
Luiz Alberto Mattos — médico e diretor do Centro de Ciências Médicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
"Canta, ó deusa, a cólera de Aquiles, filho de Peleu…" — assim se abre a Ilíada, epopeia de Homero que há milênios espelha a herança de um tempo em que os feitos dos homens e a sabedoria dos mais velhos não se perdiam na poeira do esquecimento. Pela palavra, pela reverência ao ado que os gregos transmitiam história, mas também valores, honra, ensinamento. Em cada herói, em cada ancião, havia um mestre. E cada mestre era um fio no tecido do tempo.
A lição homérica ressoa ainda hoje, sobretudo quando olhamos para a formação humana — seja na vida pessoal ou na trajetória profissional. Reverenciar nossos mestres, nossos ancestrais, é reconhecer que há uma sabedoria que não nasce nos livros, mas na convivência, na escuta, na partilha de experiências acumuladas. São eles, os mestres, que nos ensinam que o saber não é apenas técnica: é também ética, é estética da vida, é narrativa de sentido.
No seio das profissões que lidam com a dor, com a cura e com a existência — como é o caso da medicina —, essa reverência ganha contornos ainda mais profundos. Quantos de nós não fomos formados à sombra generosa de alguém que, mais que ensinar, inspirava? Quantos não devemos a mestres que, mesmo em silêncio, nos mostravam os caminhos possíveis entre o conhecimento e a compaixão? A esses homens e mulheres, que nos antecederam com os firmes e gestos sábios, devemos mais que gratidão: devemos responsabilidade.
Entretanto, a formação médica contemporânea exige mais do que memória. Exige movimento. Precisamos discutir urgentemente os rumos da educação médica no Brasil. O modelo vigente não pode se permitir à estagnação. É preciso responder, com profundidade e coragem, a perguntas que já se impõem: que médico estamos formando hoje? De que médico o Brasil e o mundo contemporâneo precisam?
Formar um profissional de saúde no século 21 requer mais do que domínio técnico: requer pensamento crítico, empatia, inteligência emocional, respeito às instituições, às normas e compromisso com a transformação social. A geração Z, que hoje ocupa as salas de aula, espera de nós — docentes — algo além do discurso: espera escuta ativa, metodologias inovadoras, experiências significativas, vínculos verdadeiros e sobretudo ética, e respeito às verdades universais. Essas não são subjetivas, muitas estão positivadas. Espera, ainda, que sejamos capazes de proporcionar uma formação que os torne cidadãos, médicos responsivos às demandas do nosso país e do mundo.
Mas não se constrói um futuro apenas com memórias. É preciso compreender que o conhecimento não deve ser apenas reado; ele deve ser construído. E essa construção exige diálogo entre gerações, exige abertura para o novo sem a destruição do que veio antes. Em tempos em que proliferam escolas médicas por todo o país, é urgente lembrar que formar médicos — e formar cidadãos — não é um ato industrial, mas artesanal. É preciso tempo, presença, e, sobretudo, mestres.
O verdadeiro mestre não é apenas o que detém um saber, mas aquele que o partilha com humildade e o reinventa com coragem. Precisamos de instituições formadoras que não se limitem a reproduzir protocolos, mas que formem pensadores, agentes de mudança, seres humanos capazes de unir técnica à sensibilidade. A medicina, como a vida, é feita de narrativas. E toda narrativa digna precisa de um ado que a sustente e de um futuro que a justifique.
Por isso, que as escolas médicas do presente saibam mirar o horizonte com a coragem de Aquiles, mas com a sabedoria de Nestor, o mais velho entre os gregos, aquele que aconselhava com ponderação, pois tinha visto o mundo girar muitas vezes. Que não esqueçamos que o futuro só se ergue sobre alicerces sólidos. E que nenhum saber será verdadeiro se não for partilhado com amor, dignidade e propósito.
Ao final da Ilíada, o herói reconhece, diante da dor do outro, a humanidade que o une ao seu inimigo. Talvez essa seja a mais profunda lição dos nossos mestres: a de que a vida é maior que a guerra, e que a sabedoria é, antes de tudo, um ato de cuidado.
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