
Claudio Lottenberg — presidente do Conselho Deliberativo da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein e Head do LIDE Saúde
O país precisa de mais médicos? Sim, precisa. Mas há uma reflexão anterior, e bem mais urgente, que não pode ficar de escanteio: o país precisa de qual tipo de médico? Em questões complexas como essa, é sempre bom começar a discussão dando uma olhada nos números. O Brasil conta hoje com mais de 575 mil médicos ativos. Isso significa que há 2,81 médicos por mil habitantes, índice similar ao do Canadá e superior ao de países ricos como Estados Unidos, Japão e Coreia do Sul.
O "xis" da questão, portanto, não é quantidade de profissionais. Muito mais relevante é a sua má distribuição pelo território: enquanto o Sudeste tem 3,76 médicos por mil habitantes, a região Norte tem apenas 1,73. A média nacional esconde essa disparidade.
Além disso, temos um grave problema de formação. O Brasil é o país com mais escolas de medicina no mundo (389), muitas delas abertas de forma acelerada, com infraestrutura precária e pouco compromisso com a excelência. O Conselho Federal de Medicina (CFM), embora faça um bom trabalho como órgão regulador da profissão, não tem jurisdição para fiscalizar esses cursos.
O resultado são gerações de novos profissionais formados sem garantias mínimas de que receberam capacitação adequada. Números divulgados em abril deste ano pelo Ministério da Educação (MEC) dão a dimensão do problema: só 40% dos nossos cursos de medicina foram considerados adequados segundo o índice do Conceito Preliminar de Curso (C), baseado no Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).
A amostragem ampla do C — mais de 30 mil estudantes, oriundos de 309 cursos de todas as regiões do país — nos autoriza a concluir, com tristeza, que seus resultados pífios refletem adequadamente o estado da formação médica no país.
E os problemas de formação não se restringem à qualidade do ensino: o que já seria suficientemente grave. Trata-se também de um foco inadequado.
A formação médica brasileira continua sendo "hospitalocêntrica" — isto é, voltada à alta complexidade. Acontece que os maiores desafios do país estão na atenção primária, em campos como prevenção, cuidado continuado, escuta qualificada, gestão de territórios, medicina familiar. Continuamos apostando nossas fichas na formação de doutores para áreas de menor demanda e, depois, nos espantamos com os baixos índices de resolutividade e a sobrecarga nos grandes hospitais.
Países como os EUA investem num modelo mais descentralizado. Médicos assistentes e enfermeiros de prática avançada têm autonomia para desempenhar funções clínicas, o que desafoga todo o sistema. No Brasil, por uma combinação de rigidez legal, resistência corporativa e insegurança institucional, ainda concentramos quase todo o cuidado numa única figura: o médico. Isso não é apenas ineficiente; é insustentável.
O quadro fica mais grave quando levamos em conta as possibilidades extraordinárias que vêm sendo criadas pelas novas tecnologias. Ferramentas de inteligência artificial (IA) para auxiliar no diagnóstico e na automação de processos, telemedicina, plataformas de pesquisa — todas essas novidades estão aumentando a precisão clínica, encurtando o tempo de resposta e tornando os atendimentos mais assertivos.
Médicos irão se ocupar cada vez mais daquelas tarefas que só um ser humano pode fazer bem: a escuta, a empatia, a confiança, o cuidado olho no olho — tarefas que nossos cursos universitários ainda não tratam com a devida prioridade.
Por tudo isso, é hora de discutirmos o futuro da saúde brasileira com a seriedade e profundidade que o tema merece. Para além do óbvio — investir em medicina de boa qualidade equivale a salvar vidas —, saúde é também um eixo de desenvolvimento que movimenta mais de 9% do Produto Interno Bruto (PIB), gera empregos diretos e indiretos, contribui para a soberania científica e tecnológica do país.
Mais do que gastar energia debatendo a pauta superficial da quantidade de médicos, precisamos qualificar a formação desses profissionais, criar incentivos para melhor distribuí-los pelo território, integrar de maneira estratégica as novas tecnologias ao sistema de saúde. Precisamos, sobretudo, de um novo projeto de país, no qual a saúde tenha a devida centralidade.
A crise da saúde brasileira não será superada enquanto continuarmos tratando apenas seus sintomas. É preciso coragem para enfrentar as causas estruturais dessa doença social e discutir, com coragem, uma reformulação das bases do sistema.
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