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Análise

Nas entrelinhas: silêncio de Mauro Cid vale por mil palavras

Durante quase seis horas, o ex-ajudante de ordem de Jair Bolsonaro negou-se a responder todas as perguntas, mesmo aquelas mais inofensivas, tipo revelar sua idade

Correio Braziliense
postado em 12/07/2023 03:55
 (crédito:  Ed Alves/CB/DA.Press)
(crédito: Ed Alves/CB/DA.Press)

No dia 30 de setembro de 1937, a Voz do Brasil, até hoje o programa radiofônico oficial do governo federal, anunciou uma "bomba", como se dizia antigamente: o general Góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exército brasileiro, revelou a descoberta de um plano cujo objetivo era derrubar o presidente Getúlio Vargas. O Plano Cohen supostamente era um projeto de tomada do poder pelo Partido Comunista Brasileiro, com apoio de organizações comunistas internacionais.

Seria uma nova insurreição armada, semelhante à Intentona de 1935, na qual haveria greves de operários, manifestações estudantis, libertação de presos políticos, incêndio de casas e prédios públicos, saques e depredações e eliminação de autoridades civis e militares que se opusessem à tomada do poder. No dia seguinte, diante da "ameaça vermelha", Vargas solicitou ao Congresso a decretação do Estado de Guerra, promoveu uma intensa perseguição aos comunistas e aos demais opositores políticos, como o governador gaúcho Flores da Cunha. No dia 10 de novembro, suspendeu as eleições marcadas para 1938 e o Brasil amanheceu sob a ditadura do Estado Novo.

Nos estertores desse regime autoritário, porém, o general Góes Monteiro revelou que o Plano Cohen não ara de uma fraude, para justificar a permanência de Vargas no poder. Para dar veracidade ao plano, a cúpula militar responsável pela "descoberta" do documento deu-lhe o nome do líder comunista Bela Cohen, que governara a Hungria entre março e julho de 1919. O general contou que o documento havia sido escrito pelo capitão Olímpio Mourão Filho, na época chefe do Serviço Secreto da Ação Integralista Brasileira (AIB), que apoiava o governo Vargas.

O plano fora elaborado a pedido de Plínio Salgado, dirigente da AIB, que afirmou tratar-se de uma simulação de insurreição comunista, apenas para efeito de estudos e utilizado exclusivamente no âmbito interno da AIB. No entanto, uma cópia do documento chegou ao conhecimento da cúpula das Forças Armadas.

Mourão revelaria em suas memórias que Góes Monteiro teve o ao documento por meio do general Álvaro Mariante, e dele se apropriou. E justificou seu silêncio diante da fraude em razão da disciplina militar a que estava obrigado.

Bico calado

Já Plínio Salgado, líder maior da AIB, que participara ativamente dos preparativos do golpe de 1937, mais tarde, diria que não revelou a fraude por temor de desmoralizar as Forças Armadas, única instituição, segundo ele, capaz de conter o "perigo vermelho". O capitão Mourão, mais tarde, já general, viria a liderar o golpe militar que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, deslocando suas tropas de Juiz de Fora (MG) para o Rio de Janeiro.

Cabe a pergunta: por que lembrar disso agora? Porque a história serve para melhor compreender o presente. O silêncio do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid, o "coronel" Mauro Cid nos bastidores do governo Bolsonaro, de quem era ajudante de ordem, valeu por mil palavras na I que investiga os atos golpistas de 8 de janeiro.

Durante quase seis horas, negou-se a responder todas as perguntas, mesmo aquelas que não teriam nenhuma consequência negativa — tipo revelar sua idade. O silêncio foi tão eloquente que o presidente da I, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), estuda as "medidas cabíveis" contra Cid por exorbitar em relação ao habeas corpus que fora concedido pela ministra do Supremo Tribunal Federal(STF) Cármen Lúcia.

O habeas corpus garantia o direito de permanecer calado quanto a fatos que o incriminasse, não os demais. Entretanto, ao anunciar que se manteria calado, Cid revelou que já responde a oito inquéritos no Supremo Tribunal Federal: envolvimento no 8 de janeiro, no caso da falsificação do atestado de vacina de Bolsonaro, no rolo das jóias e outros presentes da Arábia Saudita, no vazamento de informações sobre inquérito da Polícia Federal (PF), nas fake news contra o STF, na organização de milícias digitais e nos demais atos antidemocráticos durante o governo ado.

O silêncio de Cid é uma estratégia duvidosa de defesa. A perícia no seu celular apreendido pela PF revelou uma minuta de decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) a ser assinado por Jair Bolsonaro, com objetivo de impedir a posse do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, e conversas comprometedoras com o então subchefe de Estado Maior do Alto Comando do Exército, coronel Jean Lawand Junior. Ambos estão muito enrolados.

Como podem se enrolar alguns que o visitaram no quartel onde está preso, com regalias de oficial superior: o ex-ministro da Saúde e deputado federal Eduardo Pazuello; o general ex-diretor de logística do Ministério da Saúde, Ridalto Lúcio Fernandes; o ex-secretário de Comunicação e advogado de Bolsonaro, Fabio Wajngarten; o ex-comandante do Exército, general Júlio César de Arruda. A lista foi fornecida pelo Ministério da Defesa, a pedido da I.

Nos bastidores da comissão, assessores parlamentares do Exército fizeram apenas um pedido: não "esculachar" o militar, que compareceu ao depoimento fardado, por recomendação do comando.

A afirmação de que Cid era um mero estafeta de Bolsonaro é furada. Hanna Arendt, ao analisar o caso do criminoso nazista Adolf Eichmann, no seu julgamento em Jerusalém, desmontou a tese de que um burocrata que cumpre ordens criminosas não é culpado. Isso é a banalização do mal.

 

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