
Um levantamento inédito feito pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) trouxe à tona um dado preocupante sobre a saúde mental dos jovens estudantes do ensino médio da rede pública de ensino do DF. Mais da metade destes alunos já sofreram bullying no ambiente escolar. A pesquisa, denominada Bullying no Ambiente Escolar do Distrito Federal: percepções e implicações práticas, mapeou 34 escolas e aplicou mais de mil questionários a alunos, professores e gestores.
Segundo o levantamento, 50,8% dos alunos do ensino médio das escolas públicas da capital do país sofreram algum tipo de bullying. Além disso, 50,3% declararam terem testemunhado a prática contra algum colega. Entre os professores entrevistados, 76,4% tiveram que lidar com esse tipo de situação em suas rotinas. Entre os gestores que precisaram intermediar situações de bullying, a porcentagem sobe para 91,7%.
"Acompanhamos os últimos casos de preconceitos, violência e discriminação nas escolas e resolvemos fazer esse levantamento em parceria com a Secretaria de Saúde, que abriu as portas e facilitou o nosso o aos estudantes, docentes e gestores", afirmou a diretora de Estudos e Políticas Sociais do IPEDF, Marcela Machado. A pesquisadora informou que, além da pesquisa, foi feito um levantamento a nível nacional para mapear ações governamentais e mostrar o que está sendo feito em cada unidade federativa para combater o bullying. "O DF é a unidade com mais normativas de combate à violência nas escolas. Entre leis, cursos, cartilhas e políticas pública, são 28 normativas no total", enfatizou.
A secretária de Educação, Hélvia Paranaguá, destacou a relevância do estudo para orientar as políticas da pasta. "Essa é mais uma iniciativa que vem para fortalecer as ações de cultura de paz da secretaria. Esse é um tema que tratamos com muita seriedade e dados como esses nos ajudam a pensar políticas públicas mais efetivas de enfrentamento ao bullying. A pesquisa vai auxiliar na criação de um ambiente mais seguro e de respeito para toda comunidade escolar", disse.
Entre os materiais de apoio disponibilizados pela Secretaria de Educação, há o Guia de Valorização da Vida e o Caderno Orientador — Convivência Escolar e Cultura de Paz, que oferecem orientações práticas e reflexivas para a promoção do bem-estar e da convivência saudável nas escolas. Além disso, a pasta mantém um fluxo de encaminhamento articulado com a Secretaria de Saúde, garantindo atendimento integrado aos estudantes com demandas relacionadas à saúde mental. As equipes de orientação educacional, em parceria com pedagogos e psicólogos escolares do Serviço Especializado de Apoio à Aprendizagem (SEAA), atuam diretamente na prevenção, no acolhimento e no acompanhamento de situações de violência, com ênfase na construção de um ambiente escolar mais seguro, respeitoso e inclusivo.
Na pele
Entre os preconceitos causadores desse tipo de violência, a aparência física vem em primeiro lugar (veja quadro). Uma vítima desse tipo de bullying, que preferiu não se identificar, falou com o Correio e relatou o que sofreu. Segundo ela, tudo começou quando ela se recusou a deixar um colega de classe colar durante uma prova. "Ele se irritou com a minha resposta e, na ausência do professor, começou a gritar ofensas na frente de toda a turma. Me chamou de 'baleia', 'horrível', disse que 'ninguém nunca vai gostar de você' e que eu 'devia me matar'. Fiquei constrangida e não tive coragem de denunciar", contou.
Depois do episódio, a sensação foi de humilhação e solidão. "Mesmo com o apoio de alguns amigos, aquelas palavras ficaram comigo. Foi algo que me marcou profundamente, tanto pela forma como fui exposta publicamente quanto pela impotência que senti por não conseguir reagir ou me defender", relembrou. As consequências emocionais foram duradouras. "Desenvolvi muitas inseguranças em relação ao meu corpo. ei a me comparar constantemente com outras pessoas e a me sentir inadequada. Levou bastante tempo até eu voltar a me sentir bem comigo mesma. Eu sempre me preocupava com o que os outros pensavam sobre a minha aparência", comentou.
A pedagoga Camila Martins Sena, do Colégio Sigma, explicou que o bullying é caracterizado como um tipo de agressão que ocorre de forma contínua e repetitiva. "É praticado por um ou mais indivíduos, tendo como alvo um ou mais colegas. Essa agressão pode se manifestar de forma física, psicológica, verbal, entre outras maneiras", especificou. "Grande parte das queixas envolve agressões verbais e ameaças. Também observamos um crescimento significativo dos casos de cyberbullying, ou bullying em ambiente virtual, que acaba refletindo diretamente na convivência escolar, pois é praticado entre os próprios alunos", destacou.
Camila Martins ressaltou a importância da atuação dos professores. "Eles devem estar atentos e próximos aos alunos, com um olhar observador, capazes de perceber mudanças de comportamento, das mais sutis, as mais evidentes. É importante considerar também relatos aparentemente superficiais que os estudantes trazem, pois podem ser sinais de alerta", ressaltou.
Outra estudante disse à reportagem o preconceito vivido e as sequelas emocionais causadas por ela. Também preferindo resguardar a identidade, ela conta que os insultos começaram justamente por se destacar nos estudos. "Sempre fui uma boa aluna, tirava notas altas, e acredito que isso tenha incomodado alguns colegas. Eu era constantemente xingada e ameaçada por uma garota muito maior do que eu, então imagina o medo. Na época, foi uma amiga minha quem contou à direção sobre as ameaças, porque eu jamais teria coragem de falar, de tanto medo", contou.
O bullying sofrido chegou a atrapalhar o desempenho escolar da jovem. A situação deixou marcas profundas. "Por muito tempo, me fechei e preferi ficar sozinha. O que mais me marcou foi que eu fingia estar doente para não ir à escola, só para fugir de toda aquela violência. Meus pais chegaram a ir várias vezes à escola por causa disso, até que finalmente tomaram uma providência, trocando a agressora de turno e de turma", relembrou.
A pedagoga Camila Martins Sena também orienta os pais e responsáveis a manterem um vínculo próximo com seus filhos. "É fundamental observar alterações de comportamento, como isolamento, irritabilidade, choro frequente, desânimo, e até sinais físicos, como arranhões ou hematomas. Muitas vezes, a rotina faz com que a família entre em modo automático, sem perceber que a criança ou adolescente está sempre apresentando algum machucado, mesmo que discreto. Esses sinais podem abrir espaço para uma conversa mais atenta, e a suspeita pode, então, se tornar uma evidência confirmada", salientou.
Cicatrizes
Eduardo Rocha, terapeuta e neurocientista do comportamento, explicou que o bullying envolve, necessariamente, três personagens principais: a vítima, o agressor e a plateia. "E, muitas vezes, quem mais reforça o bullying é justamente a plateia", destacou.
Segundo ele, o problema se intensifica quando o agressor provoca sofrimento na vítima, seja esse sofrimento de origem moral ou física, e isso gera um trauma. "Esse trauma desencadeia um estresse, e o reforço contínuo por parte da plateia contribui diretamente para que esse estresse se torne crônico e traumático. É esse reforço que torna o bullying tão nocivo", enfatizou.
Rocha explica que, por isso, muitos casos podem ser caracterizados como um transtorno de estresse pós-traumático. "O bullying, ao ser reforçado socialmente pelos colegas, cria na vítima uma sensação constante de sofrimento e insegurança. Ele pode interromper o desenvolvimento emocional e social de uma criança, especialmente quando começa a limitar seu comportamento e gerar sentimentos de desvalor, desamor e desamparo", esclareceu.
O terapeuta ainda ressaltou os impactos a longo prazo. "A criança a a acreditar que não é amada, que não é útil nos grupos aos quais pertence. Esse sentimento de 'não pertencimento' e inutilidade gera desânimo e compromete gravemente suas habilidades sociais e sua capacidade de socialização", concluiu.
Saiba Mais