As redes sociais têm sido palco de intensos debates e comentários sobre os bebês reborns, bonecas hiper-realistas que surgiram nos anos 1990 e voltaram a ganhar destaque recentemente. A grande polêmica gira em torno de homens e mulheres adultos que compartilham vídeos nas plataformas digitais tratando os bonecos como se fossem crianças reais, que exigem cuidados e atenção constantes.
Entre esses cuidados estão a alimentação, a troca de fraldas, visitas a hospitais sob a justificativa de que os bonecos estariam doentes e até relatos de noites maldormidas devido a "choros" das bonecas. A discussão, antes restrita ao ambiente virtual, ganhou proporções maiores, alcançando o Poder Legislativo em diferentes regiões do Brasil.
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No Rio de Janeiro, a Câmara Municipal aprovou a inclusão do Dia da Cegonha Reborn no calendário oficial da cidade, em homenagem às artesãs que customizam bonecas para que se assemelhem a bebês reais — as chamadas cegonhas reborns.
Na Câmara dos Deputados, o deputado Cristiano Caporezzo (PL-MG) apresentou um projeto de lei que propõe proibir o atendimento de bonecas reborns em hospitais. A proposta prevê multa de até 10 vezes o valor do serviço prestado pela rede hospitalar, em caso de descumprimento.
Já o deputado Zacharias Calil (União Brasil-GO) propôs tipificar como infração istrativa o uso de bonecos ou qualquer outro artifício que simule a presença de uma criança de colo, com o objetivo de obter ou usufruir de benefícios destinados a menores. A multa prevista pode variar de cinco a 20 salários mínimos, com possibilidade de aplicação em dobro em caso de reincidência.
No último sábado, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) também resolveu entrar na onda dos bebês reborns e fez um post em seu instagram afirmando "Bebê reborn não garante licença-maternidade". Após alguns momentos, a postagem foi apagada, segundo o órgão, o conteúdo para as redes foi produzido na esteira da temática que ganhou o debate público e foi removido após avaliação do Tribunal de que não era pertinente em razão do risco de interpretações equivocadas sobre o tema. O TST também afirmou que desconhece ações judiciais trabalhistas sobre o assunto.
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Além do Tribunal, o debate sobre os "direitos do bebê reborn" também foi levantado por dois advogados nas redes sociais. Um deles relatou ter sido procurado por uma cliente que questionava quanto ele cobraria para ingressar com uma ação de guarda da boneca, adquirida pelo casal durante o casamento, agora em processo de divórcio. Em seguida ele conta que essa cliente teria ficado muito brava pela recusa e afirmou ter conseguido outro advogado para o caso.
Outra advogada compartilhou uma situação semelhante. Segundo ela, uma cliente a procurou para regularizar a guarda de uma boneca reborn adquirida antes do início de um relacionamento. Com o término da união, a outra parte ou a exigir o direito de manter contato com a boneca, alegando vínculo afetivo e apego emocional. Além da posse da boneca, também estava sendo discutida a istração dos perfis das redes sociais do brinquedo e a divisão dos custos com a boneca do enxoval.
De acordo com a advogada Silvia Souza, presidente da Comissão Nacional de Direitos Humanos da OAB e conselheira federal, no direito brasileiro, um processo de guarda de criança ou adolescente tem como principal objetivo assegurar o bem-estar do menor, garantindo seu desenvolvimento, alimentação, educação e demais necessidades fundamentais. "Esse processo se fundamenta no princípio mais importante do nosso ordenamento jurídico: a proteção da vida", ressalta. "Portanto, a meu ver, é juridicamente inviável propor uma ação judicial para disputa de guarda de um bebê reborn, uma vez que se trata de uma boneca, e não de um ser humano", completa a profissional.
Silvia explica que, conforme o Estatuto da Advocacia e o Código de Ética e Disciplina da OAB, esse tipo de ação pode ser enquadrado como lide temerária, ou seja, um uso indevido do sistema Judiciário ao propor uma causa sabidamente infundada e desconectada da realidade dos fatos. "Isso pode configurar litigância de má-fé, gerando consequências tanto para o cliente quanto para o advogado", destaca.
Assim, caso um casal dispute a posse de um bebê reborn após um divórcio, a judicialização da questão deverá ocorrer com base no direito patrimonial, e não no direito de família. Isso porque o bebê reborn, apesar de sua aparência hiper-realista e do vínculo emocional que pode gerar, é juridicamente considerado um bem móvel, assim como qualquer outro objeto que componha o patrimônio do casal.
"Ou seja, ele se equipara, do ponto de vista legal, a itens como uma televisão ou um sofá. Ainda que um ou ambos os parceiros tenham desenvolvido laços afetivos com o bebê reborn, isso não altera a natureza jurídica do objeto. O Judiciário só concede garantias e tutela de direitos fundamentais aos seres humanos. Não há, portanto, respaldo legal para se discutir guarda, visitação ou alimentos em relação a uma boneca", garante a advogada.
Nem tudo é o que parece 212b45
Enquanto alguns usuários se revoltam, afirmando que criar bonecas como se fossem crianças reais é inconcebível, outros compreendem que a maioria dos vídeos e postagens viralizadas trata-se, na verdade, de roleplay. O termo em inglês significa "interpretação de papéis" e é uma prática comum no ambiente virtual, onde uma pessoa assume um personagem, fictício ou real, e interage como tal.
No caso dos bebês rebornS, o roleplay consiste em postar fotos e vídeos cuidando das bonecas como se fossem bebês reais, com tom sério e realista. Segundo uma colecionadora de reborns que preferiu não se identificar, ela não conhece nenhuma colecionadora que realmente acredite que as bonecas têm vida.
Ela explica que a maioria apenas produz conteúdo de roleplay para atrair engajamento nas redes sociais, mas raramente deixa claro que se trata de ficção. "Com isso, muitos acabam exagerando nas encenações em busca de curtidas, sem se dar conta dos impactos negativos que esse comportamento pode gerar para a comunidade", lamenta.
No entanto, o problema vai além das colecionadoras. Diversas pessoas aram a explorar a polêmica para ganhar visibilidade, relacionando os bebês rebornS às suas áreas de atuação e fomentando um grande alvoroço social. Assim, cada vez mais pessoas acabam acreditando, com convicção, em situações que são puramente encenadas.
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