
Neste ano, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) alcançou a marca de um milhão de habeas corpus recebidos ao longo de seus 36 anos de existência. Esse número expressivo tem chamado a atenção de juristas, que aram a questionar as causas e consequências da massificação desse instrumento jurídico.
Segundo o Tribunal, o habeas corpus ocupa posição central no cotidiano do STJ, sendo um dos mecanismos mais utilizados na Justiça brasileira. Esse cenário revela, por um lado, o alcance democrático do instituto; por outro, um uso distorcido e, muitas vezes, excessivo do recurso.
Diante da impressionante quantidade de habeas corpus impetrados, surgem reflexões importantes sobre as fragilidades do sistema recursal, as limitações estruturais de cortes sobrecarregadas e a defasagem entre a legislação penal e a jurisprudência dominante.
De acordo com Guilherme Augusto Mota, advogado criminalista e sócio do escritório Guilherme Mota Advogados, o habeas corpus é, por excelência, o instrumento de contenção de abusos do poder penal. "Trata-se de remédio constitucional com raízes históricas profundas no Estado de Direito, destinado a proteger a liberdade de locomoção contra coação ilegal ou ameaça concreta a esse direito", detalha.
O advogado afirma que a informalidade do recurso não é um defeito, mas sim, uma virtude democrática, pois pode ser manejado por qualquer cidadão, sem custas, sem a necessidade de advogado e com tramitação preferencial. "A função do habeas corpus é dupla: resguardar direitos e irradiar racionalidade sobre um sistema penal por vezes marcado pelo automatismo punitivo", ressalta.
Na visão de Motta, o aumento exponencial da impetração de habeas corpus reflete um sistema disfuncional. Para ele, a marca de um milhão não deve ser interpretada como abuso da defesa, mas sim, como sintoma de um Judiciário que, nas instâncias ordinárias, não internaliza os precedentes dos tribunais superiores.
Assim, o habeas corpus torna-se não apenas um instrumento de proteção individual, mas um mecanismo de correção sistêmica, acionado diante de uma cultura processual penal que normalizou o desrespeito à legalidade. "Trata-se, portanto, menos de uma patologia da defesa e mais de uma omissão institucional reiterada", conclui.
O professor de direitos fundamentais da Universidade de São Paulo SP, Rubens Beçak, ressalta que o uso excessivo do habeas corpus no Brasil não é um fenômeno recente. "Um exemplo clássico ocorreu durante a República Velha, entre 1889 e 1930, quando o habeas corpus era utilizado para diversas situações que, hoje, teriam instrumentos próprios", explica. Na época, ainda não existiam outros 'remédios' constitucionais, como o mandado de segurança — usado, por exemplo, para garantir o cumprimento de atos istrativos, como a nomeação de aprovados em concurso público. "Na ausência dessas alternativas, o habeas corpus era usado de maneira excessiva."
Atualmente, embora não se possa falar em uma "ressurreição" da antiga doutrina brasileira do habeas corpus, Beçak observa uma "utilização ampliada" do instrumento por pessoas que percebem seus direitos ameaçados. Para ele, essa prática configura um desvio, uma vez que "o ordenamento jurídico brasileiro dispõe de uma gama ampla e eficaz de instrumentos constitucionais". Muitos habeas corpus que hoje tramitam no STJ, segundo o professor, "não deveriam ser manejados por esse meio, mas sim, por outras ações, como a ação direta de inconstitucionalidade".
Prisão de Putin
A problemática ganha contornos curiosos quando se analisa o conteúdo de certos habeas corpus recebidos pelo Superior Tribunal de Justiça. Em 12 de dezembro de 2024, por exemplo, o STJ recebeu 625 habeas corpus em um único dia. Entre eles, um caso chamou atenção: o pedido de prisão do presidente da Rússia, Vladimir Putin, sob o argumento de que a medida seria necessária para cumprir uma decisão do Tribunal Penal Internacional.
O presidente da Corte, ministro Herman Benjamin, classificou o caso como "inusitado" não apenas pela figura envolvida, mas também pela evidente contradição entre o pedido e a natureza do habeas corpus — um instrumento jurídico concebido para garantir a liberdade de locomoção, e não para restringi-la. Ainda assim, como qualquer petição que chega à Justiça, o pedido precisou ser analisado e decidido. ou por decisão monocrática, análise em colegiado e chegou até a vice-presidência do STJ, após a interposição de sucessivos recursos internos.
Situações absurdas como essa não são isoladas. Durante o plantão judiciário entre 20 de dezembro de 2024 e 31 de janeiro de 2025, o STJ recebeu habeas corpus com pedidos tão inusitados quanto infundados: um pretendia impedir a participação da cantora Claudia Leitte em uma audiência pública; outro buscava invalidar um pregão eletrônico do Tribunal Superior do Trabalho para aquisição de materiais usados em eventos institucionais.
Diante da reiteração de pedidos sem qualquer fundamento legal ou constitucional, o ministro Herman Benjamin aplicou uma multa de R$ 6 mil a um impetrante por litigância temerária. Segundo o presidente do STJ, no julgamento do HC 980.750, o comportamento configura "ato atentatório à dignidade da Justiça e litigância ímproba", sendo punido com base no artigo 77, incisos II e IV, e nos parágrafos 2º ao 5º do Código de Processo Civil (C), entre outros dispositivos legais.
As consequências do uso excessivo do habeas corpus vão muito além do mero atraso na tramitação dos processos. O elevado volume de ações, sobretudo nos colegiados de direito penal, tem dificultado o cumprimento da principal função do STJ: garantir a uniformidade na interpretação e aplicação das leis federais por meio do julgamento dos recursos especiais.