
"Mesmo quando estiver velhinha, vou fazer partos e chorar com a mesma emoção das experiências anteriores, porque é a chegada de um ser e a transformação de uma mulher. Estamos ali totalmente entregues àquele momento. Eu me sinto abençoada." O relato é de Clarice Andreozzi, 49 anos, parteira, bióloga, mãe e avó. Durante os quase 30 anos em que prepara e ajuda mulheres a se tornarem mães, ela já fez mais de 300 partos, todos com muito cuidado, acolhimento e respeito.
Engana-se quem pensa que o trabalho de parteiras tradicionais ficou no ado ou se restringe a zonas rurais. Na contramão de procedimentos hospitalares e cesarianas desnecessárias, o trabalho dessas mulheres busca garantir o bem-estar de parturientes e bebês, priorizando a individualidade de cada gestante. "Na gestação, a mulher precisa de e — não apenas e simplesmente de técnicas pragmáticas —, mas da valorização de seus desejos", explica Silvéria Santos, 70, enfermeira-parteira e professora aposentada da Universidade de Brasília (UnB).
"Dentro do ritual hospitalar, quando não há respeito nem visão do profissional ao processo natural do parto, esse momento se torna muito frio. A parteira, ao entrar em cada casa, sabe que cada mulher tem sentimentos, condições, contextos familiares e necessidades únicas. Benzimentos, cantos, rezas e e nos cuidados com a gestante a fazem sentir que está vivendo um processo natural, e não uma doença. O cuidado vai ser pautado naquilo que a mulher entende ser o melhor para ela, porque, de fato, é um momento de muita insegurança e medo", descreve Silvéria.
Antes um processo "natural", fruto de uma necessidade e inerente a diferentes comunidades, o tornar-se parteira, hoje, parte de uma motivação pessoal, escolha muitas vezes ancorada em formação acadêmica, estudos formais e, principalmente, nas próprias experiências com o gestar, parir e maternar. Foi assim com Clarice. Mãe aos 17 anos, a profissional vivenciou as dores da violência obstétrica e do desamparo, processos que tornaram suas três gestações um grande desafio.
"Quando as minhas irmãs de comunidade (Clarice é daimista, denominação relacionada à religião Santo Daime) começaram a ter filhos, me preocupei em garantir que elas tivessem uma rede de apoio. Durante os partos, eu acompanhava e dava e. Nem se falava em doula naquela época, mas eu estava executando essa função", conta. A primeira experiência como parteira ocorreu de forma inusitada, aos 21 anos, quando precisou substituir, com urgência, uma parteira tradicional.
"Fizemos um ritual que incluiu orações, banho de assento e uso de ervas e, com muita ansiedade, consegui fazer um parto lindo, sem qualquer complicação. Toda vez que a gestante dizia que tinha medo, rezávamos juntas", recorda-se. A vivência a transformou espiritualmente. "A partir dali, um canal se abriu. Todas as grávidas que tinham interesse em parir dessa forma começaram a me procurar", acrescenta. Hoje, o bebê que ela segurou nessa primeira experiência tem 28 anos.
Ancestralidade
Segundo a professora Silvéria Santos, toda e qualquer tradição representa formas de expressar comportamentos, crenças ou hábitos que percorrem gerações. Com as parteiras tradicionais não foi diferente. "Elas existem desde que os primeiros aglomerados humanos se organizaram para permanecer em um local, gestar, parir e maternar. É uma experiência de reconhecimento entre as mamíferas — em qualquer espécie, as mamíferas acolhem uma à outra e se respeitam, conforme os desejos daquela fêmea que vai parir", explica.
No ado, as parteiras (que não recebiam essa denominação) eram pessoas da comunidade e grupo social que aprendiam umas com as outras, por meio da tradição oral. O conhecimento e a necessidade de acolher e cuidar de outra mulher era perpetuado. Ao longo do século XX, novos entendimentos referentes à anatomia, à fisiologia, à farmacologia e a técnicas de cuidado foram desenvolvidos para garantir mais segurança e ajudar a superar dificuldades na vivência obstétrica. Ganharam força as intervenções médicas.
"Como qualquer mudança, isso gerou uma tendência de nos apegarmos ao novo e questionarmos o velho. Houve a desqualificação dos processos naturais. No entanto, pesquisas indicaram que, de todas as práticas desenvolvidas e relacionadas a intervenções médicas, a maioria eram técnicas violentas, que não contribuíram com a saúde da mulher nem com a da criança", destaca a enfermeira obstetra.
Parto humanizado
Conduzido por enfermeiros obstetras, a Casa de Parto de São Sebastião já registou 6.189 partos, de março de 2009 a março de 2025, com uma média mensal de 37 nos últimos três anos. Pública, a instituição funciona 24 horas por dia, todos os dias da semana, e oferece atendimento voltado para mulheres com gravidez de baixo risco. O serviço é referência em parto humanizado, respeitoso e seguro, com participação ativa das gestantes durante o nascimento de seus filhos.
A Casa de Parto, composta por 15 enfermeiros obstetras e 15 técnicos em enfermagem, também promove acompanhamento e estímulo à amamentação, revisão puerperal, rodas de conversa com gestantes e acompanhantes e planejamento familiar, com inserção do DIU de intervalo para mulheres que tiveram seus partos na unidade. A casa, que atende apenas moradores da região Leste do DF, é reconhecida pelo Ministério da Saúde com o selo da Iniciativa Hospital Amigo da Criança (IHAC), dado a instituições que prezam pelo cuidado respeitoso e humanizado à mulher durante o pré-parto, parto e o pós-parto.
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Enfermeira obstetra da unidade há 13 anos, Quênia Cristina Linhares, 46, conta que, desde a residência, tinha o sonho de atuar na Casa de Parto. Assim como a parteira Clarice Andreozzi, a motivação para trabalhar com a especialidade surgiu durante a própria gravidez. "Quando pari, há 20 anos, me deparei com situações de desrespeito muito grande com as pacientes grávidas. Lembro de escutar um médico desdenhar dos relatos de dor de uma das mulheres, dizendo a frase clássica 'foi bom para fazer, agora aguenta'", comenta.
Quênia ressalta que a Casa de Parto em São Sebastião é voltada a mulheres que não têm condições de pagar um plano particular para ter uma assistência melhor. "Aqui, damos o melhor para elas, é um atendimento diferenciado. A mulher pode escolher a posição em que se sinta mais confortável para parir. Assim que nasce, colocamos o bebê no colo da mãe, para fazer esse contato pele a pele, que o acalma. Ouvir os batimentos da mãe o aquece e também o faz sentir-se mais seguro. Isso aumenta o vínculo entre eles e a confiança da mulher", descreve.
Emoção
A parteira se emociona ao comentar sobre a realização que sente em cada parto que faz. Mesmo não contabilizando, ela estima que deve ter participado de cerca de mil. "Até hoje eu me arrepio. Imagina uma criança sair daquele ventre e vir direto para os seus braços. As mães olham, arrepiadas, e falam 'gente, saiu de mim, é meu mesmo'. Isso não é emocionante?", diz, com sorriso no rosto. Dos tantos partos que vivenciou, um lhe marcou profundamente.
Em 2009, uma bebê nascido do parto de uma mulher chamada Silvia, que estava em situação de rua, ficou um mês no Hospital Materno Infantil de Brasília (HMIB), durante a residência de Quênia, aguardando para ir para um abrigo. Com os cuidados da enfermeira, o apego à criança foi inevitável. "Eu a chamava de Silvinha. Trocava a fralda, a colocava para dormir e para tomar leite. Quando o pessoal da Vara de Infância chegou para levar essa menina, eu quase morri. Esse caso mexeu comigo, porque não tinha ninguém por ela. Não sei o que aconteceu com a Silvinha, mas nunca a esqueci", recorda, com olhos marejados.
Sobre os partos realizados na Casa de São Sebastião, Quênia conta que sempre tenta reforçar às pacientes que as dores das contrações, apesar de difíceis, indicam que o corpo está trabalhando para o bebê nascer. "Não é uma doença nem algo ruim. Sei que, em certos momentos, parece que não vamos aguentar. E é nessa hora que entram os enfermeiros obstetras para encorajar. Sempre digo às mulheres que não posso fazer muita coisa para tirar aquela dor, mas posso amenizá-la. A gente coloca no chuveiro, faz massagem e coloca para fazer exercícios, que diminuem o tempo de trabalho de parto."
Quando a reportagem chegou à Casa de Parto, Lize cochilava, tranquila, no colo da mãe, Rafaela Soares Oliveira, 31. A pequena, que nascera havia 16 horas, veio ao mundo em um parto sem qualquer complicação. Em um quarto individual, com banheira e espaço para o acompanhante, a influenciadora digital pôde parir da forma como desejou, na posição conhecida como quatro apoios (com mãos e joelhos apoiados no chão), que facilitou a saída do bebê e evitou o risco de laceração. "Fui acompanhada por três profissionais, que a todo momento perguntavam se eu estava confortável. É o segundo parto, de três, que faço aqui. E o atendimento é excelente", garante.
Questionada sobre a expansão das casas de parto no DF, a Secretaria de Saúde informou que a Casa de Parto de Planaltina deve começar a operar em julho. Já o projeto da Casa de Parto de Ceilândia está em fase final de elaboração e, em seguida, será licitada a obra.
Combate à violência obstétrica
Em 2024, foi promulgada a Lei 7.461, que estabeleceu diretrizes para prevenir e combater a violência obstétrica no Distrito Federal. A norma garante às mulheres o direito de serem informadas sobre todos os procedimentos, incluindo riscos e benefícios, além de poderem fazer a escolha de como serem assistidas durante o parto. Segundo a determinação, os profissionais que não garantirem esse direito essencial poderão sofrer sanções como advertências, multas, suspensão ou cassação do registro profissional.
O trabalho da doula
Diferentemente das parteiras, as doulas trabalham dando e informacional e emocional para as parturientes, por meio de exercícios, meditação, massagens e técnicas naturais para o alívio da dor. Mãe de quatro crianças, Bruna Maria Chaves, 35, tornou-se doula e educadora perinatal motivada pelas próprias experiências. "Sempre busquei conhecimentos relacionados ao parir e ao maternar. Amava acompanhar minhas amigas gestantes e falar sobre o valor de ter uma gestação saudável e feliz. Ainda no resguardo da minha terceira filha, me inscrevi em um curso profissionalizante na área", explica.
A doula também comenta sobre a importância de informar-se sobre todos os processos ligados à gestação e ao parto. "Educamos não somente a mulher, mas toda a família, para que, naquele momento de medo e anseio, todos possam lhe ar segurança. A doula vai olhar totalmente para aquela mãe. Por isso, além dos conhecimentos mais técnicos, é preciso desenvolver uma intimidade com aquele grupo", acrescenta.
Segundo a educadora perintal, a presença da doula inibe situações que envolvam cesáreas desnecessárias e violência obstétrica, garantindo que a mulher tenha um parto tranquilo. "Só consegui ter uma gestação e um parir feliz após me tornar doula, quando dei à luz ao meu quarto filho", destaca Bruna.