ARQUIVO EM

Papagaio atleticano é expulso de prédio pela Justiça por gritar 'gol do Galo'

Com gritos de "Galooo…" a cada gol do time alvinegro, Tzitzutzi virou alvo de ação na justiça lá pelas bandas de 1972. Juiz determinou o despejo da ave

Lea Goldstein correu um abaixo-assinado no condomínio para que os moradores atestassem que Tzitzutzi não causava problema -  (crédito: Luiz Alfredo/O Cruzeiro/Arquivo EM - Setembro de 1972)
Lea Goldstein correu um abaixo-assinado no condomínio para que os moradores atestassem que Tzitzutzi não causava problema - (crédito: Luiz Alfredo/O Cruzeiro/Arquivo EM - Setembro de 1972)

No rol das pequenas grandes frustrações dos torcedores de futebol, poucas causam tanto furor quanto, num lance dramático do time de paixão, escutar o vizinho gritar “gol” segundos antes de a televisão mostrar a bola na rede, pois o infeliz acompanha a partida pelo rádio. Momentos de chateação como esse, vividos pelos amantes do esporte, que “é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes”, levam torcedores mais exaltados, ou à loucura, ou a tomar medidas drásticas.

No começo da década de 1970, num dos condomínios mais tradicionais do Centro da capital mineira, cruzeirenses, juntos ao síndico, levaram uma ação aos tribunais, que culminou com a expulsão de um papagaio atleticano do prédio. O “crime” cometido pela ave? Perturbar os vizinhos com gritos de “Galoooo…”.

A decisão judicial pelo despejo de Tzitzutzi (carinho, em hebraico) abalou os donos do papagaio, que os chamava carinhosamente de ‘papai’ e ‘mamãe’, e gerou comoção nacional. Flávio Cavalcanti, um dos comunicadores mais influentes da época, prometeu fazer um apelo para que o casal pudesse manter a ave em seu apartamento e os convidou para participar de seu programa na TV Tupi, no Rio de Janeiro.

Esta história, verdadeira, e não uma piada de papagaio, foi reportada nas páginas dos jornais Estado de Minas e Diário da Tarde e da revista O Cruzeiro, e é o tema desta edição do “Arquivo EM”, construído com pesquisas da Gerência de Documentação (Gedoc) do Diários Associados.

Das canções do Rei aos gritos de gol

Os corredores do Edifício Paulo Barbosa, na Rua Espírito Santo, entre Goitacazes e Tupis, se tornaram mais barulhentos depois da chegada do papagaio Tzitzutzi, vindo diretamente da Floresta Amazônica. Seus donos, o casal Adolfo e Lea Goldstein, se apaixonaram pela ave, do tipo cravo-do-norte, assim que a avistaram no Mercado de Manaus durante uma viagem de turismo naquele ano de 1968.

Visualmente, o papagaio era encantador. Tinha um topete com penas que iam do vermelho ao verde ando pelo azul. A sobreposição de tons também era presente nas penas, que variavam entre o azul e o verde. Sonoramente, o repertório preferido da ave eram as músicas do Roberto Carlos, na época em transição do rock para o romântico, e que era o grande sucesso entre as empregadas do casal.

Contudo, não foram as canções do Rei que fizeram os vizinhos lutarem pelo silêncio da ave do apartamento 203. Depois de alguns anos de convívio com atleticanos, e somado à fase gloriosa do clube, campeão mineiro em 1970 e brasileiro em 1971, Tzitzutzi repetia em sua gaiola gritos de “Galoooo”, “gol do Dario” e “olha lá, olha lá, olha lá o Atlético”. Para atiçar ainda mais a cólera dos rivais, havia gritos de “Um, dois, três, Cruzeiro é freguês”.

Depois de dois anos da estadia do papagaio, alguns vizinhos aram a reclamar de incômodos com o barulho da ave, conforme relatou o casal em entrevista ao Estado de Minas, em 20 de setembro de 1972. Adolfo chegou a entrar com uma ação na Justiça para que lhe fosse permitido ficar com o bicho no apartamento. Enquanto isso, Lea correu um abaixo-assinado entre os moradores no qual atestavam, pelas s, que a ave não criava problemas. “Quase todos am a declaração, com exceção da meia dúzia de bajuladores do síndico”, disse Lea à reportagem da época.

Dentro das quatro linhas

Os esforços de defesa do casal não convenceram o então síndico do prédio, José Furtado Nunes. Na disputa de bola contra o papagaio atleticano, o síndico jogou com o regulamento debaixo do braço e fez valer uma regra que impedia a presença de animais e aves. Para tanto, iniciou uma ação também contra proprietários de dois cachorros, que, alegadamente, incomodavam os vizinhos. Os donos dos cães largaram mão da jogada, mas Adolfo e Lea não. Isso porque a mesma regra tinha uma ressalva, interpretativa, na qual era permitida a presença de aves de pequeno porte. Deu-se então início à discussão sobre qual o porte de um papagaio.

Outra alegação do síndico era que havia queixas sobre cascas de frutas supostamente jogadas por Tzitzutzi nos apartamentos abaixo. Foi entregue uma primeira intimação aos donos do bicho, devidamente ignorada, e, então, o síndico promoveu uma assembleia geral e colheu s de moradores que concordavam com a expulsão da ave.

Com o documento, foi movida uma ação judicial, que teve resultado favorável ao condomínio. O juiz Francisco de Assis Figueiredo, da 9ª Vara Cível de Belo Horizonte, decidiu pelo despejo do papagaio atleticano, mas antes criticou a iniciativa de judicializar a disputa – mais adiante, quando o caso ganhou repercussão nacional, o magistrado repreendeu a publicidade dada à situação. “Os moradores teriam agido melhor se procurassem desarmar os espíritos e vivessem em harmonia, transigindo no que fosse possível, para que a Justiça não fosse chamada a intervir em questões personalistas e de interesses egoístas”, disse o juiz.

O casal dono de Tzitzutzi soube da decisão de despejo pela reportagem do EM. Inconsoláveis, chorosos, ambos se recusaram a se afastar do papagaio querido. Cogitaram comprar outro apartamento, onde pudessem viver com o bicho em paz, ou até mesmo ir para a Europa. Adolfo, romeno, e Lea, filha de israelenses, se desiludiram ao ver a Justiça brasileira decidir pela separação da ave.

Em meio a esse turbilhão de pensamentos, surgiu uma esperança. O apresentador Flávio Cavalcanti convidou o casal para contar a história para todo o país em seu programa na TV Tupi, e, quem sabe assim, sensibilizar o síndico ou os juízes. “Esta é minha grande esperança. Vocês da imprensa é que podem me salvar. Não quero me separar do Tzitzutzi", desabafou Lea ao EM.

O apoio da torcida

Nos dias que se seguiram, a história reverberou além dos paredões da Serra. Jornais de todo o Brasil noticiaram a pitoresca situação do papagaio expulso de casa por uma ordem judicial. Publicações de fora, dos Estados Unidos e do Canadá, souberam da situação por agências de notícias e deram nota do acontecimento. No lado de cá, a revista O Cruzeiro, de grande circulação, fez um perfil de Tzitzutzi, que, àquela altura, estava fatigado de tantos flashes que recebeu dos fotógrafos e repórteres que não paravam de visitar o apartamento.

A campanha pela sensibilização em torno do papagaio poderia ganhar uma ajuda de escalões altíssimos, publicou O Cruzeiro. “Uma senhora da alta sociedade de Belo Horizonte e nome nas rodas do Rio, muito amiga de dona Lea, afirmou que pedirá a intercessão do Presidente da República para a solução do problema, que vai ganhando corpo e a simpatia da opinião popular.”

Não se sabe se o então presidente general Emílio Garrastazu Médici mexeu os pauzinhos para ajudar o casal. Com ou sem essa mão amiga, no ano seguinte os donos de Tzitzutzi receberam mais um revés em sua odisséia. O Tribunal de Justiça confirmou a decisão e ordenou, por três votos a dois, o despejo da ave. O relator, desembargador Werneck Cortes, argumentou que papagaios são, realmente, de pequeno porte, assim como gralhas, cacatuas, arapongas e corvos, “e ninguém acharia razoável tê-los em apartamentos a assobiar, a gralhar, a martelar, a crocitar, importunando e inquietando os mais pacatos”.

Que fim levou Tzitzutzi

A decisão do Tribunal não foi unânime, e, portanto, o casal poderia pedir recurso e levar o caso às instâncias superiores. Porém, a imprensa deixou de acompanhar o desenrolar da história antes de saber se a família abandonou o apartamento e seguiu até o fim unida ao Tzitzutzi, ou se a novela teve outra reviravolta. Neste ínterim, choveram propostas pela compra do papagaio, veementemente negadas por seus donos, persistentes de que não venderiam o companheiro por dinheiro nenhum.

Apesar da posição do casal ter sido noticiada à época, isto não impediu um “espertinho” de anunciar, num armazém do centro da cidade, a venda do papagaio atleticano, celebridade e capa dos jornais. O comprador foi o então chefe da torcida do Atlético, Júlio Firmino Rocha, torcedor tão apaixonado que dizia ter deixado toda a sua herança para o clube. A ideia era comprar a ave e levá-la ao Mineirão nos dias de jogo, na expectativa que os gritos de guerra da ave de “Galo! Galo!” fizessem sucesso na arquibancada.

A decepção veio poucas horas depois assim que Júlio perdeu a paciência, pois o papagaio, que custou 200 cruzeiros, não falava nada, muito menos gritava “Galo”, e apenas soltava sons comuns. No mesmo instante, o real papagaio atleticano tomava café com mel junto da sua dona, distante dali. O chefe da torcida do Atlético sumiu depois que percebeu o golpe que caira. Disse que estava no Rio e não queria falar com repórteres, mas, no fundo, estava envergonhado por ter caído no conto do papagaio. (Com produção e pesquisa de Irene Campos)

 

DL
postado em 25/05/2025 15:40
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