
A arte é um desafogo, sendo um elemento imprescindível para que a vida seja ada. Diante de tantas lutas diárias e desafios pessoais, ser encontrado por essas belezas cotidianas é uma forma de, quem sabe, conseguir enfrentar o dia. Espalhados pela cidade, esses quadros a céu aberto encantam aqueles que am por Brasília. Muitos param, registram com o celular e iram o talento de tantos artistas. Os grafites, de fato, ajudam a colorir e preencher os corredores e espaços do Plano Piloto.
Em outubro do ano ado, o grafite foi reconhecido como uma expressão cultural do Brasil, pela Lei nº 14.996, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Decisão que, certamente, contribui para que o estigma que sempre criminalizou o grafite e a se dissipar aos poucos. No entanto, sua história em território nacional vem de muito antes. Popular nos Estados Unidos, essa arte urbana, como é chamada, surgiu em Nova York, em meados de 1970. Anos depois, chegou a São Paulo, graças ao artista Alex Vallauri, um dos nomes mais importantes desse estilo artístico.
Desde então, é impossível andar por qualquer canto do país e não ficar completamente envolvido com grafite. E em Brasília, essa história não é diferente. Há décadas que essa manifestação cultural preenche paredes escolares e prédios, tanto de outras regiões istrativas quanto do Plano Piloto. De acordo com a Secretaria de Cultura e Economia Criativa (Secec-DF), cerca de 200 artes foram feitas entre os anos de 2021 e 2024, realizadas por meio de edital de chamamento público, no qual os artistas recebiam cachê e o material para realizarem as pinturas.
Entre os pontos principais estão as paradas de ônibus da W3 Sul e Norte, assim como o viaduto da Galeria dos Estados. Para o secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Claudio Abrantes, o grafite é mais do que estética urbana, é uma ferramenta poderosa de comunicação, inclusão e valorização cultural. "No Plano Piloto, essa arte ganha ainda mais força ao dialogar com a arquitetura icônica da cidade e refletir a diversidade e a pulsação artística do Distrito Federal", destaca.
Fato é que o grafite tem ganhado força no Quadradinho. Cada vez mais é possível ver lugares, antes abandonados, revitalizados com quadros expostos para toda a cidade. Para celebrar os 65 anos de Brasília, a Revista percorreu trechos do Plano Piloto para conhecer essas artes. E, claro, conversou com os grafiteiros Mão, Siren, Rafaela, Musgo, Phantom e Gurulino, responsáveis por transformar as ruas em galeria recheada de belezas.
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Chamado de vida
A relação com a arte e a maneira como ela cresce dentro de você, por vezes, é uma jornada muito individual. Se há o desejo de ser artista, esse processo é ainda mais peculiar. Na infância, desenhar fazia parte da rotina de Luis Fernando, 36. Dentro dele, havia a necessidade de se expressar e estar imerso em outra realidade. “Sempre achei que seria mais um hobby, mas com o tempo tudo mudou”, conta.
No início, pensou isso mesmo. Achou que essa atividade com o desenho seria nada mais do que um atempo. Tanto é que, na faculdade, decidiu cursar engenharia da computação. Formou-se, foi trabalhar, mas algo o incomodava. Luis não estava feliz, tampouco acreditava que era essa a profissão que gostaria de ter pelo resto da vida. De novo, voltou para aquele mesmo lugar da infância. O papel era sua casa e lá ele era quem quisesse ser.
Um grande divisor de águas para Luis foi conhecer um amigo que pintava na rua. Com a proximidade, ou a acompanhá-lo e a abrir sua cabeça para novas ideias. “Entendi mais sobre questões sociais, sobre arte e me mantive mais consciente no que diz respeito à sociedade em que vivemos”, lembra. Dessa forma, os desenhos saíram da folha em branco e foram parar no acinzentado da cidade. O concreto e os prédios se tornaram os quadros de Luis.
E há uma década tem sido essa sua realidade. Mão, como é apelidado no meio, tem um urso como seu avatar nas ruas. “Caso queira saber se a arte é mesmo minha, é só ver se tem o urso na parede”, brinca. O alterego veio de uma brincadeira de infância, que nasceu graças ao tamanho surpreendente da mão de Luis. Coincidência à parte, o vulgo calhou bem, já que é com as mãos que ele espalha tanto talento por aí.
“Sou um artista que busco evoluir, sempre me conectando. Consigo fluir em vários universos da arte, eu curto o rolê da arte mesmo. As pessoas não valorizam tanto essa profissão, mas tem que partir da gente também, falar o que é necessário para poder fazer o seu trabalho de uma forma digna e justa. Como eu trabalhava com algo que não gostava, isso que eu faço é perfeito, tem as dificuldades do dia a dia, às vezes, não entra tanto trabalho, mas aí a gente sempre dá um jeito”, acrescenta.
Herança de família
No início era apenas um crochê na companhia da avó. Nas linhas e na agulha, Rafaela Santos, 26 anos, começou a entender o que gostaria de ter como vocação. Embora esse começo tenha sido somente uma prévia do que viria pela frente, foi em casa que ela descobriu a paixão pela arte. Logo depois, aceitou o convite de uma amiga artista para levar seu trabalho para as ruas.
“Fazia o crochê em casa e levava para a rua. Plantas ou flores, não importava. Essa foi a minha primeira intervenção urbana antes dos desenhos”, relembra. Com os ensinamentos da avó, Rafaela ganhou coragem para continuar criando. Em um desses momentos de bravura, decidiu apostar no grafite como sua nova forma de se expressar. Desde 2021, ela tem estudado, se preparado e buscado referências para formar a própria identidade.
A ideia do “trampo”, como ela mesma afirma, é representar pessoas negras. Ser nas paredes uma voz que pode ir mais longe, interrompendo esse silêncio social que existe entre as ruas e a alta classe. “Tento trazer mais alegria e retratar pessoas que não conseguem alcançar seus objetivos”, ressalta. Assim, Rafaela une as problemáticas da sociedade ao que ela compreende — ainda que recentemente — do seu artístico.
Muito além do que aprendeu com a avó, Rafaela ainda carrega o desenho como uma espécie de talento geracional. Isso porque, em casa, cresceu assistindo aos tios inventarem nas páginas os mais diversos traços, com muita cor e sentimento. Diante dessas referências, não havia outra saída para ela senão a de tentar ser uma ótima grafiteira. “Não é fácil estar aqui agora. Fui mãe cedo e ser artista tem lá seus grandes desafios. Ainda assim, eu me sinto muito acolhida e posso dizer que hoje vivo disso”, acrescenta a jovem.
Embora os desafios sejam muitos, dividindo as responsabilidades maternas e pessoais com o grafite, Rafaela não deseja parar tão cedo. Evoluir e estudar é o que ela pretende daqui para frente, mantendo acesa no coração essa chama que nasceu na infância e que tem crescido com o ar dos anos. “Quero evoluir muito e estudar mais ainda.”
Um velho conhecido
Muito antes de o grafite ser o que é hoje, houve aqueles que são considerados responsáveis por fazer dessa arte um instrumento tão importante para o Plano Piloto. Nos muros da cidade, Marcos Vinícius Moraes, 35 anos, é um dos grafiteiros pioneiros de Brasília. Há quase duas décadas ele leva para as ruas a expressão cultural de seu trabalho. Mais conhecido como musgo, seu apelido vem de um significado profundo e especial. “O musgo vem surgindo na natureza, dando paisagem e cores. É o que penso sobre minha arte, ela chega levando brilho para os lugares apagados”, revela.
No caderno da escola, Musgo estilizava as letras de seu nome com contornos coloridos. “Só descobri que isso tinha nome de grafite muito depois”, confessa, rindo. Contudo, foi nesses instantes de descontração que ou a levar essa atividade mais a sério. Tanto é que tudo o que pensou em fazer desse momento em diante envolvia a arte ou o grafite de alguma maneira. Formou-se em publicidade porque acreditava que o curso que fosse estudar tinha de estar conectado com a mensagem que queria ar.
A jornada até aqui tem sido bonita e prazerosa. Claro que ser artista no Brasil não é fácil, especialmente em um estilo tantas vezes estigmatizado e criminalizado. Entretanto, não há dúvidas sobre a importância do grafite para a sociedade. “Você tem que fazer o corre e incentivar o trabalho, sobretudo com os mais novos. Reconheço o meu trabalho com muito cuidado e só penso em crescer e melhorar como artista”, complementa.
Conversar com as ruas, da sua maneira, é o que faz de Musgo diferente. Nos muros, simboliza o que ele sabe de melhor sobre as experiências que tem com as pessoas de sua bolha social. Crônicas sobre a cidade e símbolos nacionais, como o cachorro caramelo, fazem parte de seu repertório artístico. “Quero explorar esse meu lado com ênfase e fazer críticas, que é o objetivo do grafite. Esse trabalho já se encaminha para a metade da minha vida. Não pretendo parar tão cedo”, finaliza Musgo.
Um artista renomado
Pedro Sangeon, 40 anos, é o criador do personagem Gurulino, conhecido não só em murais pela cidade, mas em quadrinhos no Correio Braziliense e em ilustrações diversas. Apesar de muitos o chamarem de grafiteiro, ele se autointitula mesmo como um cara das ruas. Um artista urbano — e até plástico — que tomou para si as paredes do Plano Piloto com o intuito de retratar o que absorveu do mundo, transformando essas internalizações em verdadeiras obras de arte espalhadas por aí. Em homenagem ao aniversário de Brasília, a capa da Revista estampa uma obra exclusiva feita por ele.
Em suma, seu trabalho é sua vida. Na ternura do que cria, considera o grafite um movimento fundamental de resistência artística, social e política, que vem da periferia ao centro. “A rua é de todo mundo, e a ocupação dela com a arte é fundamental para uma sociedade saudável e coletiva. A arte de rua é um lembrete constante disso”, completa. Gurulino — sim, o artista e o personagem se fundiram — está na atividade desde os anos 2000. De lá pra cá, ele fez longas pausas para estudar terapias contemplativas e retornar para os muros com sua identidade mais formada. Assim, nasceu seu alterego, que é amplamente conhecido nos espaços de Brasília.
Gurulino acredita que o grafite é uma arte que se impõe diante do caos da cidade e dos abismos sociais, revelando as potências criativas mesmo com a opressão do sistema. Brasília é seu ponto de interesse e encontro, um lugar de reflexão, pesquisa, coleta e sua galeria de arte. É como se a cidade fosse seu ateliê. O que o inspira e lhe provoca para continuar criando é o diálogo entre quem faz e quem vê, poder conversar com a cidade por meio de seu trabalho e usar o grafite que produz como uma ferramenta para construir comunidades.
Mas, para além disso, ser uma espécie de incômodo com questões sociais e ideológicas, expondo nas paredes do Plano Piloto as mazelas que existem nas ruas, as invisibilidades que poucos percebem. "Para mim, é muito importante ajudar as pessoas a entenderem que a rua deve ser democrática e compartilhada", acrescenta o artista.
Brasília é jovem e, como sociedade, reflete muito as contradições da mentalidade do Brasil, como descreve Gurulino. Como artista, ele crê que ainda há muito por fazer pela arte urbana e, também, como público, para alcançar e entender sobre arte. Desmistificar a crença de que o grafite anda lado a lado com a criminalidade é um de seus objetivos. Mais que isso, fazer com que todos compreendam que esse estilo artístico é uma parte primordial de toda a cultura urbana.
Lendas do grafite
Quando se anda pela cidade, é impossível não se deparar com as artes de Camilla Siren, 28, que assina apenas Siren. Ela está no ramo do grafite há uma década e destaca a importância dessa manifestação cultural, sobretudo como um movimento ou ferramenta artística, além de ser um estilo de vida que engloba experiências pessoais e profissionais. De acordo com ela, os artistas de rua e quem interage com as artes são pessoas de realidades e vivências diferentes, mas que, de alguma forma, encontram-se nesse espaço público e produzem juntos a cultura de Brasília, fazendo do grafite uma forma para impulsionar a identidade da capital.
“Aquilo está ali na cidade e faz parte do cotidiano das pessoas, de uma maneira que não temos nem noção, são interpretações e pontos de vista únicos”, expressa. “Eu acho que não tem museu ou galeria com tantas possibilidades como a rua. É um ato muito democrático deixar sua arte assim e afetar tantas pessoas sem nem saber.”
A artista diz que grafitar em Brasília é desafiador, por ser uma cidade planejada, com muitas áreas preservadas, mas que isso faz parte da história e deve ser mantido assim. “Cabe ao artista encontrar os locais disponíveis e pensar em formas interessantes de preencher os espaços. É importante ter em mente a influência que esse ato tem nas pessoas, porque a gente, às vezes, esquece o quanto influencia as pessoas, que aquilo irá permanecer de alguma forma na vida de muitos.”
Ramon Andrade, 36, leva na arte o alterego de Phantom. Grafiteiro há 11 anos, ele diz que o grafite mudou sua vida, tanto em questões de escolhas quanto na percepção das coisas que almeja e pode alcançar. Ele afirma que o grafite abriu não só portas, mas sua mente, e o ajudou a entender muitas coisas e conhecer diversas pessoas, que somaram a bagagem e hoje são influências no seu trabalho.
Ramon fala, também, que Brasília pode parecer uma cidade fria nas relações, mas o grafite traz um aquecimento, um “quentinho” no coração das pessoas que am pelas ruas e levam com ela um pedaço daquela arte, o que cria um diálogo com a população. “Na correria do dia a dia, as pessoas não têm tempo de visitar um museu ou galeria, apesar de a cidade oferecer diversos desses espaços, mas o grafite está por todos os lados e de fácil o para quem quiser ver”, declara ele.
Artes pela cidade
— Parque da Cidade
— Galeria dos Estados
— Espaço Renato Russo
— Conic
— Paradas de ônibus da W3 Sul e Norte
*Estagiária sob a supervisão de Sibele Negromonte