
MICHELLY ANTUNES, líder do Programa Nossas Crianças, da Fundação Abrinq
Em 2024, o Brasil registrou mais de 57 mil notificações de violência sexual contra crianças e adolescentes, uma média alarmante de 156 casos por dia. Isso significa que, a cada hora, sete meninas ou meninos foram oficialmente identificados como vítimas de algum tipo de violação. O dado, por si só, revela a gravidade da situação. No entanto, por se basear exclusivamente em registros feitos no sistema público de saúde, esse número está longe de refletir a real dimensão do problema. A maioria dos casos segue silenciada, seja por medo, vergonha, falta de o à rede de proteção ou, ainda, pelo vínculo afetivo e familiar entre a vítima e o agressor.
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Maio é o mês de mobilização nacional pelo enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, tendo o dia 18 como marco oficial dessa luta. É nesse contexto que a Fundação Abrinq lança uma nova edição da campanha Pode Ser Abuso, com um alerta claro e urgente: estamos diante de um problema estrutural, persistente e amplamente invisibilizado. A campanha parte de uma análise inédita de dados oficiais do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), abrangendo o período de 2009 a 2024.
Nesse intervalo de mais de 15 anos, o Brasil registrou, em média, 28 mil notificações anuais de violência sexual contra pessoas com até 19 anos. Foram quase 20 mil estupros por ano e mais de 8 mil casos anuais de assédio sexual. A análise revela que crianças e adolescentes representam a maioria esmagadora das vítimas: 75,6% das notificações de violência sexual, 81,9% dos casos de assédio e 72% dos estupros envolveram vítimas dessa faixa etária.
Meninas são maioria em todos os tipos de violência analisados: mais de 85% das vítimas são do sexo feminino. No entanto, é importante ressaltar que meninos também são vítimas e, muitas vezes, de forma ainda mais invisível. Eles representaram quase 15% das notificações. O estigma em torno desses casos e a expectativa social de que "homens não sofrem esse tipo de violência" contribuem para a ocultação e o silenciamento desses episódios.
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Um dado especialmente doloroso revelado pela campanha é a reincidência da violência. Em 2024, duas em cada quatro meninas com até 19 anos que sofreram estupro ou outro tipo de violência sexual já haviam sido violentadas anteriormente, mesmo após arem por atendimento no sistema de saúde. Isso evidencia a urgência de aprimorar a articulação da rede de proteção, fortalecer o acolhimento e garantir que o ciclo da violência seja efetivamente interrompido. O cuidado com a vítima não pode terminar na notificação: ele deve se estender em ações continuadas, com e psicológico, social e jurídico.
O ambiente doméstico, que deveria ser sinônimo de segurança, é, na maioria das vezes, o cenário da violação. Em dois terços dos casos registrados em 2024, a violência ocorreu dentro da própria casa da vítima. E o agressor, frequentemente, não é um desconhecido. Está no convívio diário, na rotina, no círculo de confiança da criança ou do adolescente. Essa proximidade torna a denúncia ainda mais difícil e reforça a importância de que toda a sociedade esteja atenta aos sinais.
A campanha Pode Ser Abuso aposta em uma abordagem direta, ível e educativa. Mudanças súbitas de comportamento, queda no rendimento escolar, medo de determinadas pessoas, alterações no sono ou na alimentação podem ser sinais de que algo está errado. É fundamental reconhecer esses indícios e agir com responsabilidade e empatia. Essa não é uma tarefa restrita a pais, mães ou professores. É um compromisso coletivo, de vizinhos, familiares, profissionais da saúde, da assistência social, da educação e de toda a comunidade.
Denunciar é um ato de proteção. Em caso de suspeita ou confirmação de violência sexual, Disque 100, acione o Conselho Tutelar ou procure a delegacia mais próxima. Reconhecer a gravidade do problema é dar um o firme na direção da mudança. Precisamos, enquanto sociedade, romper o silêncio que protege os agressores e fragiliza ainda mais as vítimas. Não podemos normalizar o inaceitável.