Opinião

Golpe de 64: políticas de memória para a não repetição de ameaças à democracia

Vivemos o julgamento de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil, em pleno século 21. Nosso momento atual demonstra de forma cabal a necessidade de levarmos a sério a justiça de transição no nosso país

Comissão pediu desculpas a indígenas Krenak e Guarani-kaiowá por crimes na ditadura  -  (crédito: Lohana Chaves/Funai)
Comissão pediu desculpas a indígenas Krenak e Guarani-kaiowá por crimes na ditadura - (crédito: Lohana Chaves/Funai)

Ana Maria OliveiraPresidenta da Comissão de Anistia

Na data em que relembramos os 61 anos do golpe de Estado de 1964, resultando em mais de duas décadas de ditadura militar e de terrorismo de Estado, o Conselho da Comissão de Anistia reafirma o papel fundamental das políticas de memória, verdade, reparação, justiça e reformas estruturais para a defesa da democracia e a produção de garantias de não repetição.

A Comissão de Anistia, nos dois últimos anos do governo Lula, retomou a apreciação de requerimentos de perseguidos políticos entre 1946 a 1988 que, no governo anterior, foram alvo de negacionismo histórico, com novas perseguições e revitimização de pessoas que, em vez de serem reparadas, como manda o Art.8º do ADCT da Constituição de 1988, foram constrangidas a ouvir que as torturas, arbitrariedades, cerceamento de direitos e liberdades fundamentais que sofreram não aram do exercício de dever público e que não teríamos vivido uma ditadura entre 1964 e 1988, mas, sim, uma democracia. 

Superada essa página infeliz da nossa história, na qual a Comissão de Anistia foi instrumentalizada por pessoas que fazem a apologia da ditadura e do golpismo, o terceiro mandato do presidente Lula restabeleceu parte da composição original da Comissão de Anistia e incluiu outras conselheiras e outros conselheiros que têm em comum a defesa intransigente da democracia e dos direitos humanos e a repulsa à ditadura e ao golpismo.

Liderados pela ministra Macaé Evaristo e pelo assessor especial Nilmário Miranda, resgatamos os atos solenes de pedidos de desculpas em nome do Estado brasileiro, inaugurados pelo ex-presidente da Comissão de Anistia Paulo Abrão como uma importante reparação simbólica. Além disso, estendemos essa reparação simbólica para o plano coletivo. Com o instituto da Anistia Coletiva, demos início ao reconhecimento de um conjunto de atos de exceção, na plena abrangência do termo, motivados politicamente e perpetrados por agentes do Estado autoritário contra grupos sociais, étnicos, comunitários e culturais durante o período, acompanhados do pedido de desculpas oficial do Estado democrático. 

Entretanto, sabemos que o caminho da defesa da democracia é longo e permanente. Por isso, junto a demais entes estatais e sociedade civil, buscamos desenvolver outras três fundamentais políticas públicas: educação para a memória histórica e democrática junto à comunidade escolar dos ensinos fundamental e médio; atendimento psicológico, pelo SUS, às vítimas da violência de Estado do ado e do presente; redes de memoriais sobre a violência de Estado, as Caravanas de Anistia, levando a reparação para o local em que foram praticadas as violações e a resistência democrática na formação histórica brasileira.

A Comissão de Anistia é um dos poucos órgãos públicos que trata diretamente da justiça de transição no Brasil. A Lei Nº 10.559/2002, que a instituiu como comissão de Estado, não indica prazo para a comissão acabar, e é salutar que assim o seja. A sua tarefa não envolve somente a análise e a concessão de pedidos de reparação econômica e simbólica, mas também a promoção de políticas de memória e para a não repetição. Vivemos no contexto inédito de julgamento de uma tentativa de golpe de Estado no Brasil, em pleno século 21. Nosso momento atual demonstra de forma cabal a necessidade de levarmos a sério a justiça de transição no nosso país. Uma das formas de fazermos isso é garantir a permanência e o necessário apoio institucional, orçamentário e social para o trabalho das comissões públicas que lidam diretamente com o tema.

A Constituição de 1988 demarca o conceito de anistia como algo devido aos que foram perseguidos políticos, como algo justo, e que acarreta o dever do Estado de reparar os que outrora perseguiu. Para a nossa ordem constitucional, a anistia deve ser sinônimo de justiça, e não de impunidade para golpistas e torturadores, para pessoas que atacaram ou tentaram atacar as bases democráticas tão duramente conquistadas.

Por fim, neste momento de esperança para a nação brasileira, reafirmamos a importância da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, da responsabilização dos agentes da ditadura e de responsabilizar individualmente os agentes de Estado que conspirem contra a democracia e suas instituições. Essa mudança cultural, acompanhada por profundas reformas institucionais nas Forças Armadas e de segurança, é fundamental para a substituição da cultura autoritária pela cultura democrática, na construção urgente de uma nação livre e igualitária. 

Ditadura, nunca mais! Democracia, sempre!

 

Por Opinião
postado em 02/04/2025 06:00
x