TRABALHO

Os 'microtrabalhos' exaustivos na internet que atraem mulheres com promessa de renda sem sair de casa: 'Se não bato meta, espero o dia virar e recomeço'

Possibilidade de conciliar cuidados com os filhos e trabalho doméstico com geração de renda online, leva mulheres a ficarem 14 horas por dia assistindo vídeos, respondendo pesquisa de mercado ou impulsionando vendas de produtos para plataformas digitais.

BBC
Adriana Amâncio e Mariana Rosetti - Do Recife e de Santo André (SP) para a BBC News Brasil
postado em 02/06/2025 04:45 / atualizado em 02/06/2025 09:23
Flávia compartilha links de produtos da Shopee e ganha comissão de 1% a 3% sobre as vendas  -  (crédito: Acervo Pessoal)
Flávia compartilha links de produtos da Shopee e ganha comissão de 1% a 3% sobre as vendas - (crédito: Acervo Pessoal)

Flávia começou a trabalhar como camelô aos 20 anos e, até hoje, aos 32, nunca teve um emprego formal.

Mãe solo de três filhos — de 15, 13 e 8 anos —, viu a responsabilidade de sustentar a casa sozinha se tornar ainda mais penosa com a crise econômica gerada pela pandemia de covid-19. Foi nesse período que encontrou uma promessa tentadora: trabalhar de sua casa, em São Gonçalo (RJ), fazendo uma série de pequenas tarefas em sequência em plataformas digitais em troca de uma remuneração por cada uma delas.

É o que se chama de microtrabalho e pode envolver desde a participação em pesquisas de mercado e testes de produto a treinar sistemas de inteligência artificial ou simplesmente ar sites, dar curtidas em postagens e assistir a vídeos e outros conteúdos para gerar audiência para eles.

Flávia, por exemplo, trabalha cerca de 14 horas diárias se alternando entre o aplicativo PiniOn — onde realiza avaliações de plataformas de transporte — e o Kwai, onde assiste a vídeos repetidamente em troca de alguns centavos por cada visualização.

"Eu começo umas 9 horas, tem dia que começo umas 10 horas. Se não bater a meta, fico até 23h. Aí, tem que esperar virar o dia para poder começar de novo", explica Flávia, que pediu para ter nome real preservado nesta reportagem por temer retaliações das plataformas.

Depois de um mês de trabalho e 420 horas diante da tela do computador ou do celular, ela diz que consegue juntar em média pouco menos R$ 700, que ela usa para sustentar cinco pessoas — ela, os filhos e o irmão, que tem deficiência.

Na tentativa de aumentar os ganhos, Flávia conta que, nas últimas semanas, ou a trabalhar para uma terceira plataforma: a varejista digital Shopee.

"Eu tenho que compartilhar os links dos produtos. Se alguém comprar, eu ganho 1%, 3%. Mas já é uma plataforma em que eu não consigo fazer dinheiro fácil, pois tenho que torcer para o povo comprar", diz.

Mas o trabalho não para por aí: ela cuida sozinha de todas as tarefas domésticas.

"Não tem horário [certo para trabalhar]. Como as atividades de casa sou eu que faço, eu faço uma atividade, entro um pouquinho [nas plataformas]. Faço outra atividade, paro e entro mais um pouquinho", explica.

Ela diz que, entre vassouras e cliques, seus dias são longos e exaustivos, o que já tem reflexos na sua saúde.

"Os meus olhos ficam ardendo. Sinto o ombro queimar", diz ela, acrescentando que tanta driblar o cansaço como pode, com estratégias improvisadas.

"Deito na cama, boto os vídeos para tocar e deixo rolando [automaticamente], já dá para descansar um pouco."

O Kwai disse em nota à BBC News Brasil que, apesar de usuários criarem conteúdo para ganhar dinheiro, "não incentiva nem promove a visualização contínua de vídeos como forma de monetização".

Também "repudia qualquer forma de exploração ou comportamento que coloque em risco a integridade física, emocional ou psicológica dos usuários" e "segue aprimorando suas políticas" junto com especialistas e órgãos reguladores.

O PiniOn afirmou os usuários participam voluntariamente em "missões", como pesquisas de opinião e coleta de dados, em troca de recompensas em dinheiro como uma forma de renda extra e não sua fonte principal, fixa ou significativa.

A empresa também disse em nota que "nunca recebeu qualquer crítica relacionada a jornadas excessivas e insegurança financeira".

A Shopee disse que seu programa de afiliados "é uma iniciativa gratuita" que permite aos consumidores indicarem produtos "voluntariamente" em troca de uma comissão pelas vendas e que oferece aos participantes apoio para ampliar seu alcance e ganhos.

No Brasil, o microtrabalho é feminino

Mulheres como Flávia são a maioria dos microtrabalhadores no Brasil.

Essa é uma característica particular desse mercado por aqui, segundo o estudo Fabricar os dados: o trabalho por trás da Inteligência Artificial, do Laboratório de Trabalho, Plataformização e Saúde (LATRAPS), vinculado à Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG), que tem como um dos autores o pesquisador e psicólogo Matheus Viana Braz.

Enquanto as mulheres respondem por 63% da mão de obra por trás das microtarefas, em outros países, o quadro praticamente se inverte, e os homens são 70% dos trabalhadores das plataformas.

Braz explica que não há um cálculo exato do número de microtrabalhadores no Brasil, porque a maioria das plataformas não divulga essa informação.

Mas, em sua pesquisa, uma delas, a Microworkers, forneceu esses dados. A plataforma tinha 300 mil perfis brasileiros registrados em 2023.

O estudo de Braz aponta que, em linhas gerais, a informalidade que atinge 40% da população brasileira cria o campo fértil para o microtrabalho, porque a incerteza sobre o dinheiro que entra todo mês faz com quem as pessoas busquem qualquer atividade que ofereça o mínimo de renda.

Mas, no caso das mulheres, existem elementos adicionais que tornam esse tipo de trabalho especialmente atrativo.

Celular com app Shopee
Acervo Pessoal
Flávia compartilha links de produtos da Shopee e ganha comissão de 1% a 3% sobre as vendas

O primeiro aspecto, segundo a pesquisa sobre microtrabalho no Brasil, é a dificuldade de conseguir um emprego: 73,7% estão desempregadas e 38,7% dependem exclusivamente das plataformas.

Destas mulheres, 40% dizem que, embora tenham se formado na faculdade, não encontram uma oportunidade onde moram.

O estudo também mostra que 62,6% são mães ou responsáveis pelos cuidados de outras pessoas da família, como deficientes, idosos ou parentes mais novos.

Não à toa, "o maior benefício apontado por elas é a suposta conciliação entre o trabalho digital e o trabalho do cuidado", diz Matheus Viana Braz.

"Essas mulheres são as principais responsáveis pelos cuidados domésticos e familiares."

Novas configurações de trabalho também representam novos impactos à saúde física e psicológica, ressalta o pesquisador.

"Embora faltem pesquisas sobre os efeitos a longo prazo, sabemos que são trabalhos penosos, repetitivos, que produzem fadiga", diz Braz.

"As queixas mais comuns são de isolamento e falta de sentido. É uma condição extremamente inadequada de trabalho. 'Eu trabalho na cama, amamentando, na festa de família. Onde der, eu trabalho'."

Essa dinâmica também gera ansiedade. "Você tem que ficar disponível 24 horas por dia nos grupos, perde o direito à desconexão para buscar boas tarefas", explica o pesquisador.

Há um padrão distinto na forma como homens e mulheres se relacionam com as plataformas digitais de microtrabalho, de acordo com Braz.

Enquanto eles tendem a ar menos vezes, mas permanecem conectados por longos períodos ininterruptos, elas entram mais vezes ao longo do dia, em sessões curtas e fragmentadas.

"As mulheres usam qualquer tempo livre, entre uma atividade de cuidado e outra, para realizar um microtrabalho. O pouco tempo que essa mulher tem livre dentro de casa agora a a ser usado a serviço de uma possível rentabilidade", diz Braz

Alternativa ao desemprego

A promessa de flexibilidade e renda extra foi o que atraiu Juliana. Há seis meses desempregada, após anos trabalhando como operadora de caixa em supermercados de Camaragibe (PE), no Grande Recife, ela viu as contas não pararem de chegar.

Foi em um grupo do aplicativo de mensagens Telegram que surgiu o que parecia ser uma luz no fim do túnel: uma oportunidade de ganhar dinheiro usando apenas o celular e sem sair de casa.

A missão parecia simples: curtir postagens de produtos vendidos pelo Magazine Luiza em seu site, fazer capturas de tela para comprovar que havia feito isso e enviá-las a um contato específico. Ganharia entre R$ 5 e R$ 10 por cada curtida.

Há pouco mais de um mês, o celular, que antes era usado por ela para se comunicar e se divertir, virou um instrumento de trabalho no qual Juliana mexe quase o dia inteiro. Das 9h às 21h, ela cumpre uma jornada silenciosa de cliques.

Em sua casa, o salário mínimo do marido não cobre as despesas da família: só de aluguel, pagam R$ 350. Ainda há água, luz, gás — contas que, somadas, ultraam um salário mínimo.

Com a renda das microtarefas, Juliana tenta aliviar o peso financeiro sobre o companheiro.

"[O dinheiro] está dando para eu ajudar nas continhas da casa e comprar as minhas coisinhas de limpeza, meus shampoos", explica Juliana, que teve sua verdadeira identidade preservada a seu pedido. "Espero que dê certo, que tenha o meu salário."

O Magazine Luiza disse em nota que "não faz nenhum tipo de recrutamento de pessoas para atuarem em qualquer plataforma ou serviço por meio de convites enviados via Telegram, WhatsApp ou outro aplicativo de comunicação", e que essas ações "não têm aval ou vínculo formal com o Magalu ou qualquer marca do grupo".

A empresa afirmou que o caso de Juliana é exemplo "uma de diversas táticas usadas por golpistas que utilizam, indevidamente e sem qualquer autorização, o nome da companhia e de outras empresas para ações criminosas", informou que toma medidas para coibir isso e pede que os consumidores denunciem abordagens suspeitas.

O problema na visão de quem estuda o mercado de trabalho é que as funções exercidas por Flávia e Juliana não têm caráter didático ou informativo, mas repetitivo. Elas não sairão dessas experiências com novos conhecimentos ou habilidades que contribuirão para outros mercados de trabalho.

Outra questão apontada por especialistas é que a maior participação das mulheres nestas funções não se repete em cargos bem remunerados e de prestígio nas grandes empresas de tecnologia, as big techs.

Em muitas destas companhias e na formulação de políticas públicas digitais, mulheres sequer são levadas em consideração, aponta Luiza Corrêa de Magalhães Dutra, pesquisadora e líder de projeto do Instituto de Referência em Internet e Sociedade e doutoranda da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS).

"Em muitos países da América Latina e Caribe, o marcador de gênero ainda não é central nas políticas públicas para o ambiente digital. Nem nas big techs. As mulheres não são incluídas para pensar essas políticas", explica Dutra.

"Como consequência, enfrentam mais barreiras, mais violência e menos oportunidades nos espaços digitais."

Essa ausência se reflete diretamente no tipo de trabalho ofertado a elas, ressalta a pesquisadora. Em vez de corrigir desigualdades históricas, o mercado digital reproduz — e, muitas vezes, aprofunda — hierarquias já estabelecidas.

O espaço online, visto muitas vezes como moderno e inovador, pode acabar reencenando papéis antigos: as mulheres ocupam as funções mais precarizadas, repetitivas e mal remuneradas.

"Há uma reprodução de violências e de locais de uma hierarquia, quando a gente está falando de uma pirâmide de gênero, de locais de ocupação, de trabalho, de renda", observa Dutra.

"Isso é reproduzido e utilizado pelas grandes empresas no online para captar mulheres, por exemplo, para aceitar subempregos."

Para muitas mulheres, ingressar no microtrabalho digital não representa então uma emancipação ou um progresso — mas a perpetuação de situações de precariedade e violência.

A promessa de flexibilidade e autonomia, diz Dutra, esconde uma realidade de jornadas invisíveis, insegurança e desgaste físico e emocional.

"Quando sou mulher e vou trabalhar no ambiente digital, já carrego uma carga de violências que são sofridas nesse ambiente em que estou tentando trabalhar", afirma a pesquisadora.

App Pinion
Acervo Pessoal
Flávia ganha R$ 0,50 por cada pesquisa respondida no PiniOn. No final do dia, se executar todas as trinta tarefas corretamente, receberá R$ 15

Faltam leis trabalhistas

O microtrabalho no Brasil ainda não é contemplado pelas leis trabalhistas brasileiras — ou de outros países, ressalta Matheus Viana Braz.

"Não houve nenhum país que regularizou o microtrabalho. Existem várias iniciativas em curso, que tudo indica que essa regulamentação vai começar pela Europa", diz Braz.

Mas o pesquisador aponta que as empresas deste mercado têm sido pressionadas a oferecerem melhores condições de trabalho.

A última edição do relatório do projeto Fairwork, que estuda a economia de mercado em torno de novas plataformas digitais, analisou a atuação dessas empresas em cem países para verificar, por exemplo, se o pagamento, as condições de trabalho e o gerenciamento destas tarefas são feitos de forma justa.

"Com isso, eles conseguem fazer com que as empresas implementem melhorias, mas são coisas pontuais. Regulamentação, em si, ainda não houve."

Segundo o pesquisador Renan Kalil, professor de direito no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper) e procurador do trabalho de São Paulo, a regulamentação das relações de trabalho no campo das microtarefas ainda estão na fase de estudo.

Em 2025, o Ministério Público do Trabalho (MPT) criou o Crowdworking, um grupo de trabalho ligado à Coordenadoria Nacional de Combate às Fraudes nas Relações de Trabalho (Conafret), para debater sobre o microtrabalho no Brasil.

Kalil aponta que um dos desafios para a Justiça atuar nesta área é que muitas dessas plataformas não têm sede física ou representação judicial no Brasil.

Isso é um obstáculo, por exemplo, para que a empresa seja notificada para responder um processo na Justiça ou para atender requisições feitas pelo Ministério Público do Trabalho em investigações.

O procurador diz que os microtrabalhadores estão em uma situação de vulnerabilidade maior, por exemplo, do que a dos entregadores de comida, graças à sua "completa invisibilidade".

"Você sai na rua e vê um entregador trabalhando, mas, na microtarefa, o trabalhador é invisível, ele simplesmente executa e entrega o produto e ninguém vê. Isso o deixa ainda mais vulnerável", observa Kalil.

Um dos poucos exemplos de ação trabalhista envolvendo o microtrabalho se deu em maio de 2022, quando o MPT de São Paulo instaurou uma ação civil pública contra a Ixia Gerenciamento de Negócios.

Essa empresa contratava trabalhadores para realizar acompanhamento de atendimento virtual realizado por robôs para a operadora de telecomunicações Sky. Os profissionais cumpriam escalas de plantões corrigindo possíveis erros cometidos pela inteligência artificial e eram pagos como se realizassem microtarefas.

Em depoimento, um trabalhador afirmou receber R$ 0,11 centavos por minuto, remuneração que o levava a trabalhar o máximo de tempo possível para atingir a meta.

A BBC News Brasil teve o ao processo em primeira instância e à revisão do caso feita pelo Tribunal do Trabalho da 2ª Região com um resumo da sentença que condenou a empresa na segunda instância.

Segundo a ação civil, para ingressar no trabalho, os profissionais tinham que se tornar microempreendedores individuais (MEIs). O contrato firmado entre a Ixia e os trabalhadores dava a ideia de que eles estariam "empreendendo" com a realização deste trabalho.

A Ixia reforçou nos autos do processo que "assim como os demais trabalhadores, o trabalhador que depôs é um empreendedor, tanto que constitui pessoa jurídica, e trabalhava sob sua conta e risco, e que não existia pessoalidade na prestação de serviços ou subordinação".

Mas a Justiça disse que se tratava de uma forma de "trabalho terceirizado online" em que "o cumprimento das atividades em tempo hábil e sem erros, era a condição para evitar a quebra do contrato".

A Ixia foi condenada em segunda instância a reconhecer vínculo empregatício, pagar uma indenização de R$ 1,3 milhão por danos morais coletivos. Também foi proibida de contratar novos profissionais na modalidade de microtarefas — terá de fazer isso conforme as regras da CLT.

A empresa recorreu ao Tribunal Superior do Trabalho, que ainda não julgou o caso. A Ixia foi procurada pela reportagem para comentar sobre o assunto, mas não respondeu.

"Por trás de toda a tecnologia criada — algoritmo, inteligência artificial — tem um ser humano. Um ser humano que criou a tecnologia e que de alguma forma está auxiliando a tecnologia a ser utilizada", pondera Luiza Dutra, da PUC-RS.

Essa criação, no entanto, não é neutra, ressalta a pesquisadora: "Somos criados dentro de um ambiente extremamente racista e machista".

"Ao mesmo tempo que eu coloco mulheres em locais que deveriam ser extremamente importantes para a luta contra a violência de gênero, eu pago muito pouco para que elas ocupem esses espaços", denuncia Dutra.

A revolução tecnológica avança. Mas, por trás da promessa de um futuro digital, persistem abusos e a desigualdade — atualizados para a era dos algoritmos.

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