INUSITADO

A advogada que defendeu traficante El Chapo e agora concorre a cargo de juíza no México

No domingo, o México se tornará o primeiro país a eleger todos os seus juízes, inclusive os da Suprema Corte.

El Chapo está atualmente cumprindo prisão perpétua nos EUA -  (crédito: Getty Images)
El Chapo está atualmente cumprindo prisão perpétua nos EUA - (crédito: Getty Images)

Enquanto motoristas aguardam no trânsito perto da Ponte das Américas, que liga o México aos EUA, Silvia Delgado ziguezagueia entre os carros distribuindo panfletos.

"Sou candidata a juíza penal", diz ela, animada. "Vote no número 12 nas cédulas de votação!"

A maioria abaixa os vidros alegremente e aceita um panfleto dela. Mas na eleição bastante singular de domingo – a primeira de duas eleições em que os mexicanos escolherão todo o Judiciário do país por voto direto – Silvia Delgado não é uma candidata comum.

Ausente da curta biografia em seus panfletos está o nome de seu cliente mais conhecido: ela foi advogada de defesa do notório traficante de drogas Joaquin "El Chapo" Guzmán.

Críticos da advogada dizem que seu ado defendendo o líder do cartel de Sinaloa deveria desqualificá-la para se candidatar como juíza. Ela dá pouca importância a essa ideia.

"Por que deveria? Por fazer o meu trabalho?", ela retruca a qualquer insinuação de conflito de interesses.

"Por defender as garantias individuais das pessoas? Por montar uma defesa técnica adequada para um ser humano? Por que isso me tornaria ilegítima?", ela pergunta.

Membros da Marinha Mexicana, usando balaclavas, escoltam El Chapo após sua prisão. El Chapo tem bigode e olha para a câmera enquanto um dos fuzileiros navais o segura pelo pescoço e pelo braço.
Getty Images
El Chapo está atualmente cumprindo prisão perpétua nos EUA

Silvia Delgado não foi condenada por nenhum crime, não enfrenta nenhuma acusação e não está sob investigação – seja por suas ligações com El Chapo ou qualquer outro motivo.

Mas uma importante organização de direitos humanos e transparência no México, chamada Defensorxs, a incluiu em uma lista de 19 "candidatos de alto risco" na eleição. Além de Delgado, a lista inclui um candidato com condenação por tráfico de drogas e outro que enfrenta acusações de orquestrar violência contra jornalistas.

O diretor da Defensorxs, Miguel Alfonso Meza, acredita que os chamados "candidatos de alto risco" representam um perigo para a legitimidade do sistema judiciário mexicano.

"Alguém que já trabalhou com um cartel tem muita dificuldade de sair, mesmo que tenha sido apenas como advogado. Não se trata nem de ser uma pessoa boa ou má", diz Meza, referindo-se a Silvia Delgado.

"O Cartel de Sinaloa não é apenas 'El Chapo' Guzmán. É uma empresa com interesses criminais e econômicos que estão sendo resolvidos na Justiça. O cartel poderia pressioná-la a demonstrar lealdade, já que ela já foi funcionária deles."

Silvia Delgado visivelmente se enrijece ao ouvir a menção de Defensorxs e Miguel Alfonso Meza.

"É completamente estúpido", ela se irrita, afirmando que os desafiou a "investigar o ado dela o quanto quiserem". Ela também rejeita a principal acusação de que ela foi paga com dinheiro do tráfico e poderia ser comprometida se fosse eleita juíza.

"Como você pode provar isso? Recebi um pagamento igual a qualquer pagamento mensal normal que me era pago por advogados, membros da equipe jurídica dele. Não sou filha, irmã ou algo assim. Sou uma profissional."

Silvia Delgado, vestindo uma blusa preta e branca, está distribuindo panfletos aos eleitores em um carro na Ponte das Américas.
BBC
Os panfletos de Silvia Delgado não mencionam seu cliente mais famoso

Delgado concorre a um dos mais de 7.500 cargos judiciais em disputa – a votação definirá a composição de todo o Judiciário do país, incluindo a Suprema Corte.

Enquanto estava em discussão, a reforma judicial provocou protestos generalizados de estudantes de Direito e uma greve de trabalhadores do sistema jurídico. Seus críticos afirmam que eleger todos os juízes do México equivale à politização do sistema de justiça do país.

"É claro que é um ataque político [ao judiciário]", diz Miguel Alfonso Meza.

"O ex-presidente Andrés Manuel López Obrador não gostava de ter restrições do Poder Judiciário. Quando a pressão se tornou muito grande e as restrições muito severas, a única solução que encontraram foi remover todos os juízes do país", acrescenta.

Essa reforma foi aprovada antes da posse da atual presidente, Claudia Sheinbaum, mas ela é uma firme defensora dela e as pesquisas indicam que ela também conta com ampla aprovação entre o eleitorado.

Os defensores apontam que Estados Unidos, Suíça e Bolívia elegem muitos de seus juízes. Mas o México se tornará o primeiro país do mundo a eleger todos eles.

Os mercados continuam inseguros, com os investidores temendo a perspectiva de o partido governista controlar a Presidência, o Legislativo e o Judiciário.

Miguel Alfonso Meza acredita que os problemas surgirão dos "acordos e negociações que os juízes precisam fazer com os atores políticos... para obter o apoio necessário para vencer as eleições".

Miguel Alfonso Meza, vestindo uma camiseta cinza, olha para a câmera enquanto está na calçada de uma rua na Cidade do México
BBC
Críticos como Miguel Alfonso Meza temem a politização do judiciário

Uma das 64 candidatas que buscam uma vaga na Suprema Corte é Olivia Aguirre Bonilla. Também de Ciudad Juárez, sua formação jurídica é em direitos humanos e como ativista contra a violência de gênero na perigosa cidade fronteiriça.

Como todos os candidatos, Aguirre Bonilla teve que pagar por sua campanha do próprio bolso – candidatos são proibidos de aceitar financiamento público ou privado e proibidos de comprar espaços publicitários.

Assim, ela tem usado principalmente as mídias sociais para divulgar seu plano de seis pontos, que incluem a repressão a salários exorbitantes e a abertura das audiências da Suprema Corte ao público.

Embora reconheça as críticas sobre a potencial politização do sistema de justiça mexicano, Aguirre Bonilla acredita que a votação é uma oportunidade para uma mudança significativa em um Judiciário falido, corrupto e nepotista.

"Acho que todos os cidadãos mexicanos são politizados e todos fazemos parte da vida pública", afirma.

"A diferença aqui é que nosso sistema jurídico 'intocável' – e era intocável porque era controlado pelas elites, por privilégios – pela primeira vez na história será eleito. Será democratizado pelo voto popular."

Muitas pessoas no Judiciário estavam lá por influência e conexões familiares, argumenta Aguirre Bonilla, e ele não tem a legitimidade dos poderes Executivo e Legislativo.

"Esta votação concederá ao sistema de justiça uma verdadeira independência, já que não é escolhido pelo Presidente da República, mas eleito pelo povo mexicano para representá-lo."

Olivia Aguirre Bonilla
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Olivia Aguirre Bonilla acredita que a reforma dá voz aos cidadãos no sistema judicial

Até agora, os argumentos sobre constitucionalidade, legitimidade e os candidatos têm sido acirrados e ferozes.

Agora, todos os olhares se voltam para as seções eleitorais, especialmente para os índices de comparecimento e abstenção como indicadores do apoio dos mexicanos à reforma.

Quanto a Silvia Delgado, a mulher que defendeu o traficante mais procurado do México, ela só espera que o povo de Ciudad Juárez respeite seu trabalho o suficiente para permitir que ela julgue outros criminosos que lhe sejam apresentados.

BBC
Will Grant - Correspondente da BBC no México
postado em 31/05/2025 16:59 / atualizado em 31/05/2025 19:14
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