INTERNACIONAL

Naturalizado brasileiro, opositor de Erdogan: quem é empresário turco preso pela PF em São Paulo

Empresário mora no Brasil há duas décadas e é naturalizado brasileiro desde 2012; prisão faz parte de um processo de extradição iniciado a partir de solicitação do governo da Turquia

A defesa de Goktepe classifica o processo como um caso de perseguição motivada por razões ideológicas -  (crédito: Reprodução/Facebook)
A defesa de Goktepe classifica o processo como um caso de perseguição motivada por razões ideológicas - (crédito: Reprodução/Facebook)

A Procuradoria Geral da República revogou a prisão do empresário turco naturalizado brasileiro Mustafa Goktepe, 47 anos.

No dia 30 de abril, a Polícia Federal prendeu Goktepe em São Paulo, como parte de um processo de extradição iniciado a partir de solicitação do governo da Turquia.

Na decisão, o subprocurador André Brito Gueiros Souza destacou não haver elementos que justifiquem a manutenção da prisão cautelar e que crimes supostamente cometidos pelo empresário ocorreram após de sua naturalização.

O caso ainda será analisado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), sob relatoria do ministro Flávio Dino, que autorizou a prisão temporária enquanto o processo é avaliado.

Goktepe mora no Brasil há duas décadas, é casado com uma brasileira e tem duas filhas, de 8 e 13 anos, nascidas no país.

Naturalizado brasileiro desde 2012, ele é proprietário de uma rede de restaurantes de comida turca e coordena duas escolas em São Paulo. Também foi professor visitante da Universidade de São Paulo (USP).

O empresário é acusado pelo Ministério Público da Turquia de terrorismo por integrar o movimento Hizmet, fundado pelo clérigo muçulmano Muhammed Fethullah Gülen, morto em 2024 no exílio nos Estados Unidos.

O movimento, antes aliado do atual presidente Recep Tayyip Erdogan, ou a ser considerado terrorista após a tentativa frustrada de golpe de Estado em 2016. Erdogan está há 22 anos no poder — primeiro como primeiro-ministro e agora como presidente.

Goktepe também é investigado por uso do aplicativo de mensagens criptografadas ByLock — associado à rede de Gülen — e movimentações financeiras consideradas suspeitas.

A defesa de Goktepe classifica o processo como um caso de perseguição motivada por razões ideológicas.

"Esse é mais um triste episódio de uma perseguição política perpetrada pelo governo turco utilizando a extradição como método de submissão a tribunais de exceção e violações de direitos fundamentais", afirma o advogado Beto Vasconcelos, ex-secretário Nacional de Justiça.

Segundo ele, o empresário "não praticou absolutamente nenhum ilícito, nem na Turquia, nem no Brasil", e é "reconhecidamente defensor da democracia, da tolerância política e religiosa".

"Mustafa nunca negou sua ligação com o movimento Hizmet. Trata-se de um movimento que defende a democracia, a tolerância política e religiosa. Nenhum país democrático reconhece o Hizmet como organização terrorista. A ONU também não classifica o grupo dessa forma", afirmou o advogado.

Vasconcelos também sustenta que a extradição é juridicamente impossível: "Mustafa é brasileiro naturalizado há 13 anos e, portanto, sequer pode ser extraditado".

'Indignação e surpresa'

O pedido da Turquia foi encaminhado ao governo brasileiro por meio do Ministério das Relações Exteriores e inclui garantias diplomáticas de que o crime imputado a Goktepe não é de natureza política ou militar.

O governo turco também prometeu que ele terá direito à ampla defesa e não será processado por atos anteriores à extradição — exigência prevista no artigo 96 da Lei de Migração.

O Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional do Ministério da Justiça avaliou que o pedido cumpre os critérios legais, como a equivalência do tipo penal no Brasil e a pena mínima superior a dois anos.

Segundo a nota técnica, não há comprovação formal da nacionalidade brasileira derivada ou originária de Goktepe nos autos, o que, na visão da pasta, pode afastar o impedimento constitucional à extradição de brasileiros.

A defesa de Goktepe defende, no entanto, que a nota técnica está equivocada, já que contraria a portaria de naturalização expedida pelo próprio Ministério da Justiça em 2012.

"Tenho absoluta confiança de que, assim que essas informações forem apresentadas ao Supremo, a prisão será revogada e a extradição negada, assim como nos dois outros casos precedentes em que o governo turco tentou, de forma ilegal, perseguir cidadãos que vivem há décadas no Brasil", afirma Vasconcelos.

Lideranças religiosas, ex-presidente e organizações civis am cartas de apoio ao empresário.

A Confederação Israelita do Brasil (Conib) expressou "indignação e surpresa" com a prisão e afirmou que Goktepe é um "ativista vinculado ao Instituto do Diálogo Cultural" com atuação relevante no país.

"Mustafa demonstra disposição para o diálogo de forma solícita e cordial", escreveram Claudio Lottenberg e Luiz Kignel, dirigentes da entidade.

"Confiamos que, em breve, ele estará novamente entre nós, com sua simpatia e sua capacidade de promover eventos culturais, dando continuidade ao Diálogo Multicultural e ao Diálogo Inter-religioso."

O rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista (CIP), também se posicionou a favor de Goktepe, destacando sua atuação em ações de aproximação entre diferentes comunidades de fé.

"Mustafa sempre se apresentou como uma liderança religiosa comprometida com a promoção da paz, do diálogo e da convivência harmoniosa entre povos e religiões."

A organização humanitária Cáritas, vinculada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), afirmou em carta que Goktepe tem histórico de defesa dos direitos humanos e contribui há anos para a integração de imigrantes no Brasil.

O jurista e ex-ministro da Defesa José Carlos Dias afirmou, em manifestação enviada ao STF, que a extradição "ofenderia os princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito". Para ele, trata-se de um "grave risco de submissão a tribunais de exceção".

Mustafa Goktepe
Reprodução/Facebook
A defesa de Goktepe classifica o processo como um caso de perseguição motivada por razões ideológicas

Este é o terceiro pedido de extradição feito pela Turquia contra membros do movimento Hizmet no Brasil. Os dois anteriores, envolvendo os empresários Ali Sipahi e Yakup Sagar, foram negados pelo STF. Ambos também eram naturalizados brasileiros e acusados de terrorismo por Ancara.

Nos dois casos, o Supremo decidiu revogar a prisão cautelar com base na integração dos empresários à sociedade brasileira, na falta de antecedentes criminais e no entendimento de que as acusações tinham forte conteúdo político e religioso.

No caso de Sipahi, o ministro Edson Fachin autorizou em 2019 a substituição da prisão por medidas cautelares como uso de tornozeleira eletrônica, entrega de aporte e recolhimento domiciliar.

Já no caso de Sagar, em 2022, o ministro Alexandre de Moraes destacou a "estabilidade de sua presença no país" e a documentação que comprovava sua atuação empresarial e envolvimento em atividades humanitárias.

O nome de Mustafa Goktepe voltou a aparecer, em janeiro deste ano, na lista do Ministério do Interior da Turquia de pessoas mais procuradas por crimes ligados ao terrorismo.

O caso está sob relatoria do ministro Flávio Dino, que deve avaliar o mérito do pedido de extradição nos próximos meses.

A reportagem procurou a Embaixada da Turquia no Brasil, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

BBC
BBC Geral
postado em 07/05/2025 16:34 / atualizado em 07/05/2025 21:00
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