Novos rumos da Igreja

O Vaticano além da religiosidade

Ao Correio, o embaixador do Brasil na Santa Sé afirma que temas espinhosos tratados pelo papa Francisco devem seguir na ordem de prioridades do sucessor, independentemente de ele ser de vanguarda ou não

Embaixador Everton Vieira Vargas:
Embaixador Everton Vieira Vargas: "Somos vistos ainda como a maior nação católica do mundo e muito respeitados por isso" - (crédito: Arquivo pessoal )

O Vaticano vai muito além da Basílica de São Pedro e dos símbolos da Igreja Católica Apostólica Romana, ali a Cidade-Estado tem uma força política que pera fronteiras e chega a todos os continentes porque o chefe maior é o papa. Consciente disso, há quase 200 anos, o Brasil tem uma sólida representação diplomática na Santa Sé e, cumulativamente, junto à Ordem Soberana e Militar de Malta. Ao Correio, o embaixador brasileiro Everton Vieira Vargas, diplomata experiente e respeitado no Itamaraty, confirmou que acompanha atentamente as negociações que antecedem o conclave. Para ele, é impossível que temas, como a defesa da paz, os direitos humanos e os impactos das mudanças climáticas fiquem fora das preocupações do sucessor de Francisco.

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 "A principal missão da Igreja é, claro, espiritual, mas isso que não significa que seja alienada", ressaltou o embaixador. "Servi em vários postos no exterior, e posso dizer que aqui há pessoas preparadíssimas em todas as áreas. Absolutamente todos os temas, o Vaticano acompanha de perto, e faz uma análise muito precisa sobre cada um. Nada escapa a esse radar", observou Vieira Vargas que se diz convencido de que o Brasil, independentemente da nacionalidade do próximo pontífice, está entre as prioridades para uma visita oficial. "Nós somos vistos ainda como a maior nação católica do mundo e muito respeitados por isso."

Se o papa Francisco não se furtou a insistir na paz, no fim das guerras no Oriente Médio, na África e na Ucrânia, e ao defender os imigrantes sob o ponto de vista dos direitos humanos e alertar sobre os riscos das ameaças ao meio ambiente, o futuro sucessor não deverá ficar atrás, na opinião do embaixador. Essa tendência independente de o próximo pontífice ser ou não considerado de vanguarda. "Guardo muito bem o que ouvi aqui de um cardeal experiente. Ele disse 'somos todos progressistas e conservadores dependente do campo que se esteja falando'", afirmou Vieira Vargas.

Para o embaixador, o escolhido deverá demonstrar para os pares nas congregações - reuniões que antecedem o conclave - como vê o papel da Igreja diante dos desafios que se apresentam no mundo. Segundo ele, foi a forma como Jorge Bergoglio se apresentou aos cardeais, analisando criteriosamente as circunstâncias e opinando sobre temas gerais e específicos, que o colocou na lista dos mais prováveis a ocupar a cadeira de Pedro. "O discurso do papa Francisco foi muito contundente à época, mostrando não só como estava e era preparado, mas também a possibilidade de agregar, e não dividir, uma preocupação da Igreja após Bento XVI", ressaltou Vieira Vargas.

Relação secular   

Brasil e a Santa Sé (Vaticano) têm relações formais desde 1826, quando o papa Leão XII recebeu as cartas credenciais do monsenhor Francisco Corrêa Vidigal, enviado por D. Pedro I para o reconhecimento da independência do Brasil. É que o imperador temia que uma eventual demora pudesse aumentar a influência de Portugal na escolha dos bispos na ex-colônia. Ao agir rápido, o país ou a ser a quarta nação mais antiga a manter  vínculos diplomáticos com o Vaticano, atrás apenas da França, da Espanha e de Portugal.

Com Francisco, essa relação se intensificou. Tanto é que a primeira viagem internacional dele foi ao Brasil para participar da XXVIII Jornada da Juventude no Rio de Janeiro, embora fosse um compromisso de Bento XVI, era também um grande desejo do pontífice. Segundo o embaixador, o papa falava com carinho sobre o Brasil e gostava de brincar com a velha rixa com os argentinos. "Jamais o vi mal humorado ou irritado. Ele usava essa imensa capacidade que o humor tem para conquistar e se aproximar das pessoas e das circunstâncias", relembrou.  

Em maio de 2019, Francisco enviou uma carta para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que estava preso na Superintendência da Polícia Federal, em Curitiba. Nela, o papa pediu que ele manter a fé e a confiança em Deus, seguindo em defesa da política como caridade. Junto, encaminhou um rosário. Volta e meia, os dois conversavam por telefone. Em 2023, o presidente foi ao Vaticano e esteve com o papa. No ano ado, o secretário de Estado da Santa Sé, cardeal Pietro Parolin, veio ao Brasil - foi a São Paulo, Brasília e Aparecida. Não à toa, a comitiva brasileira foi uma das maiores para os funerais do pontífice, estavam também a ex-presidente Dilma Rousseff, e os presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado e da Câmara.

 Além de mais de 180 milhões de católicos, o Brasil tem o maior episcopado da Igreja (mais de 400 bispos, dentre titulares, substitutos e eméritos), tanto é que houve cinco visitas de pontífices ao país: três de João Paulo II, uma de Bento XVI e outra de Francisco. As pautas políticas da Santa Sé e do Brasil têm vários aspectos comuns, como a defesa do combate à fome e à pobreza, a garantia da paz, da segurança e do meio ambiente, desarmamento e não proliferação, as questões relacionadas aos direitos humanos, migrantes e refugiados, além da redução de desigualdades internas, entre outros. Vieira Vargas ressaltou que essas discussões seguem na ordem de prioridades do Vaticano. "Há uma estreita convergência entre temas sociais e as áreas multilaterais. Essa comunhão de ideias aproxima ainda mais, além do interesse de cooperação em vários campos", destacou.


Um líder destemido

Ao mesmo tempo que comanda a Igreja Católica Apostólica Romana, o papa é o chefe de Estado do Vaticano — com poderes absolutos (executivo, legislativo e judiciário) sobre a Cidade do Vaticano. Nos 12 anos de pontificado, Francisco abordou temas delicados, como o fim das guerras, o combate às armas, a inclusão dos marginalizados, o acolhimento dos imigrantes e a defesa do meio ambiente. Nada ficava de fora.

"A política ensinada pelo papa Francisco é a de serviço. Ademais, de ofício para a paz e busca pelo bem comum", observou Alexandre Pereira da Rocha, professor no Instituto de Ciência Política na Universidade de Brasília (IPOL/UnB), em artigo recente. "A política é, antes de tudo, a arte do encontro", ressaltou o pesquisador, referindo-se à frase repetida pelo pontífice.

Em mais de 40 viagens ao exterior, o argentino Jorge Mario Bergoglio foi às periferias, defendeu o diálogo entre as religiões e conseguiu, inclusive, negociar com o governo da China na nomeação de bispos. Também reaproximou a Igreja de Cuba e dos Estados Unidos, além de interceder no processo de paz na Colômbia.

Francisco jamais se esquivou de conflitos, estivessem na América Latina ou na África. Pouco antes de morrer, seguia inconformado com a guerra na Ucrânia, que seguia sem fim, além dos confrontos em Gaza. Na Missa do Domingo de Páscoa, mandou um recado em defesa da paz e do fim das disputas armadas.

"(A política do papa) destaca a capacidade de inspirar e mover seres humanos na construção de uma sociedade mais justa, fraterna e voltada para o bem de todos. Assim, Francisco traça a melhor política, a qual é de inclusão e não de descarte, é de paz e não de guerra, é de amor e não de indiferença, é de acolhimento e não de discriminação, é de serviço e não de privilégio", disse o professor.

O papa também tocou no espinhoso tema dos imigrantes, questão que ele associava à justiça social, uma vez que muitos tentam fugir da miséria e da fome. Outra preocupação do pontífice era a sustentabilidade do planeta. Em várias ocasiões, fez defesa da "revolução verde" e condenou o "uso irresponsável dos bens que Deus colocou" na Terra. (RG)

 

Universo à parte em Roma

A Santa Sé é a sede da Igreja Católica Romana, com um território de 0,44 quilômetro quadrado no centro de Roma, conhecido como Cidade do Vaticano. A população é de aproximadamente 800 pessoas — entre as quais, o papa. A Ordem Soberana Militar e Hospitalar de São João de Jerusalém, de Rodes e de Malta é uma ordem religiosa católica que tem um status sui generis de direito internacional, recebendo o tratamento equiparado ao de Estado, com soberania reconhecida por mais de cem países, entre eles, o Brasil. É autorizada a emitir aportes, manter embaixadas e participar da Organização das Nações Unidas (ONU) com o status de observador. Foi criada a partir de um hospital, mantido em Jerusalém, pela Ordem de Cluny para cuidar dos peregrinos que se dirigiam à Cidade Santa. ou pelas ilhas de Rodes e Malta e fixou-se definitivamente em Roma em 1834. (RG)

  

Nos quatro cantos do planeta

O papa Francisco conseguiu, entre tantos feitos, aumentar em quase 2% a população de católicos pelo mundo apenas entre 2022 a 2023. Segundo o Annuario Pontificio 2025 e o Annuarium Statisticum Ecclesiae 2023, elaborados pelo Escritório Central de Estatística da Igreja, da Secretaria de Estado, há 1.406 bilhão de pessoas que seguem a Igreja Católica Apostólica Romana. Proporcionalmente, África e Ásia registraram maior crescimento, mas a América do Sul mantém a maioria.

Se o Brasil tem orgulho de reunir 182 milhões de católicos, na Argentina, no Paraguai e na Colômbia, 90% dos habitantes se dizem católicos. Na África, a República Democrática do Congo é confirmada em primeiro lugar no número de católicos batizados, com quase 55 milhões, seguida pela Nigéria, com 35 milhões, enquanto Uganda, Tanzânia e Quênia também registram números expressivos.

Na Ásia, pelo menos 76,7% dos católicos estão concentrados nas Filipinas, com 93 milhões, e na Índia, com 23 milhões. Já a Europa, que reúne 20,4%, segue sem alterações, embora Itália, Polônia e Espanha registrem mais de 90% da população como sendo católica. (RG)


Santos brasileiros

Um país católico e com mais de 40 beatos e santos, dos quais vários nasceram no exterior, mas adotaram o Brasil como pátria. Dos famosos nascidos em solo verde-amarelo, estão Santa Dulce dos Pobres, a Irmã Dulce, de Salvador, na Bahia, e Frei Galvão, cujo nome de batismo era Antônio de Sant'Anna Galvão, de Guaratinguetá, em São Paulo. Ainda beato, mas adorado como santo, sobretudo, no Ceará, Padre Cícero foi reabilitado pelo papa Francisco. Em carta enviada pelo cardeal Pietro Parolin à diocese do Crato, a biografia do religioso e suas ações foram consideradas correspondentes às premissas do pontífice argentino.

 

 

 

 

 

postado em 05/05/2025 06:02
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