
Um reencontro com a infância, com a arte e com a paisagem mítica de Jorge Amado. Foi o que motivou a viagem de uma semana dos amigos e artistas Josuel Júnior, brasiliense, e Arthur Scovino, fluminense, a Mangue Seco, no litoral norte da Bahia, cenário icônico das adaptações de Tieta do Agreste (1977) para a televisão (em 1989) e para o cinema (em 1996). A expedição deu origem a um mini documentário sensível, que mistura performance, memória afetiva e reverência a um dos grandes clássicos da literatura brasileira e conta com mais de 43 mil views somados no Instagram e no YouTube
A ideia surgiu da memória compartilhada dos dois artistas em relação à novela da TV Globo, que chega ao final de sua reprise no Vale a pena ver de novo nesta sexta-feira (16/5). Josuel assistiu à novela Tieta na primeira reprise, de 1994, quando tinha 8 anos. Arthur, também com 8, viu a versão original em 1989. Mesmo com uma diferença geracional, os dois foram profundamente marcados pela trama que, com humor e crítica social, revelou o universo nordestino através da personagem de Jorge Amado — e que teve nas dunas de Mangue Seco um dos seus cenários mais icônicos.
"Acho bonito que, mesmo de gerações diferentes, a gente se encontra nesse ponto em comum da infância", reflete Arthur Scovino, artista visual nascido em São Gonçalo (RJ) e radicado em Santos (SP). Com uma trajetória ligada à performance e à arte relacional, Arthur viu na viagem a chance de transformar o imaginário afetivo em gesto artístico. “A gente chegou com um roteiro, mas deixamos espaço para o que o lugar nos sugerisse”, explica.
O ator e produtor cultural de Samambaia Josuel Júnior explica que, antes de viajar, a dupla definiu que não queria mostrar apenas dois artistas desfrutando de Mangue Seco, mas sim criar um conteúdo que permitisse ao público sentir a essência do lugar. "Queríamos que o público pudesse experimentar o sabor da comida, o cheiro do lugar e a brisa das dunas, por isso decidimos construir um mini documentário que capturasse a beleza e a magia de Mangue Seco", detalha ele, mescla cenas da novela original à produção.
Durante a estadia, Arthur realizou uma série de intervenções performáticas — incluindo a simbólica escavação das dunas para encontrar o livro Tieta, como se cavasse para alcançar as camadas mais profundas da memória e da literatura. A ação, registrada em vídeo, dialoga com a atmosfera mítica da região e com a própria essência do romance de Jorge Amado, ambientado na fictícia Santana do Agreste — espelhada em Mangue Seco.
"Essa experiência deixou marcas em nós e inspirou a forma como abordamos o projeto. A participação de Artur foi fundamental, pois suas intervenções artísticas durante a viagem transformaram o resultado final do mini documentário. O simbolismo de escavar as dunas para encontrar o livro é uma homenagem à história e ao seu legado. A novela e o filme são adaptações da obra de Jorge Amado, por Aguinaldo Silva e Cacá Diegues, mas a essência da história está nas Dunas de Mangue Seco", destaca Josuel.
Do encantamento à pesquisa
Há algo em comum nas três obras de Jorge Amado (livro, novela e filme): o encantamento pelo Mangue Seco das dunas, dos caranguejos, do rio Real, da praia e das cabras. Se Santana do Agreste é um lugar que não existe no mapa, o que seria equivalente à cidade de onde Tieta foi expulsa quando moça? A Pontal, bairro de Sergipe? Ao povoado de Coqueiro, no município de Jandaíra? É isso que dois artistas foram descobrir.
A busca por uma Santana do Agreste imaginária e pelas imagens sedutoras que podem ser vistas atualmente nas tardes provocou a curiosidade de Josuel e Arthur, que exploraram por uma semana o vilarejo baiano a fim de revisitar o Mangue Seco do imaginário de Jorge Amado dentro do projeto Expedição Mangue Seco.
"Mangue Seco é muito mais que Tieta, isso sabemos... mas sem Tieta, Mangue Seco não seria a mesma coisa. Queremos mostrar o o a o para se chegar ao Vilarejo, como funciona a travessia de rio para a península, qual a distância real de um lado (do rio) para o outro (da praia), além de entender o que o turista precisa saber para também fazer suas expedições com seus amores, seus amigos e suas famílias, na criação de suas próprias memórias”, salienta Josuel.
A pesquisa começou há alguns meses. Arthur e Josuel mergulharam no universo de Tieta para a expedição que visitou as locações escolhidas pelo designer Hans Donner para a composição da vinheta de abertura da novela, casas que serviram de fachada para algumas cenas da primeira fase da trama, moradores que acompanharam de perto as gravações das duas obras (na tevê e no cinema), além da produção de um verdadeiro guia turístico para quem também quer se aventurar no bucólico cenário a céu aberto.
Arthur conta que ganhou o livro ainda criança e, desde então, o relê periodicamente. “É um livro que fica na minha cabeceira. Ele fez parte do meu trabalho na Bienal de São Paulo de 2014, a Casa de Caboclo. Ele era o centro da instalação, como se todas as histórias nascessem a partir dali.”
Mesmo após viver uma década na Bahia, foi só agora, adulto, que ele conheceu Mangue Seco. “É engraçado, porque é um lugar pequeno, dá pra atravessar tudo a pé, e ainda assim carrega essa aura imensa por causa do livro, da novela, do filme. Existe uma egrégora ali, um encantamento coletivo que vem sendo renovado a cada exibição.”
O mini documentário propõe justamente isso: renovar o encantamento. Com imagens da paisagem quase surreal das dunas, a obra convida o espectador a mergulhar não só na beleza do local, mas também na memória que ele carrega — uma memória que é tanto individual quanto coletiva.
“Acreditamos que o público vai se conectar com essa história e com a beleza de Mangue Seco”, afirma Josuel Júnior. “Essa viagem foi mais do que uma produção audiovisual. Foi uma visita ao nosso ado e à força simbólica de uma narrativa que atravessa gerações.”
O lançamento do projeto nas redes sociais ganhou repercussão. Os vídeos estão sendo exibidos no Instagram em cortes durante esta última semana da novela, com mais de 10 mil visualizações, mas a versão integral já foi disponibilizada no Youtube para pré-estreia e já acumula 33 mil os. A população de Mangue Seco, estimada em aproximadamente 250 pessoas, assistiu ao material, que circulou nos grupos de WhatsApp do povoado.
Um grande sucesso atemporal
Inspirada no livro de Jorge Amado, lançado em 1977, Tieta desponta como uma das maiores audiências da história da Globo. A exibição original, entre 1989 e 1990, gerou também sucesso comercial com a venda de produtos de beleza, roupas, órios, discos e fitas. Entre 1994 e 1995, Tieta esteve em cartaz no Vale a pena ver de novo pela primeira vez. A trilha sonora foi novamente comercializada numa edição especial, elevando consideravelmente a audiência da faixa de reprises.
Após essa exibição, a novela escrita por Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn chegou a ar apenas para a Globo Internacional em 2003, enquanto no Brasil a novela em cartaz foi Anjo mau. Reprisada também pelo Canal Viva em 2017, um possível retorno na era digital parecia impossível, até que a Globo anunciou a reexibição como parte das comemorações dos 60 anos da emissora.
Assim como Tieta retornou à sua terra natal para revirar as estruturas sociais, os dois artistas retornaram ao cenário que os formou como sonhadores e criadores. Com a câmera na mão e o coração nas lembranças, o mini documentário é um tributo à força da ficção e da paisagem como motores da transformação — pessoal, política e poética.
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