
Madri — As trajetórias do piloto Ayrton Senna e da ativista Eunice Paiva garantiram ao Brasil quatro estatuetas no XII Prêmio Platino, no domingo (27/4), em Madri. O ano de 2025 representa o recorde de indicações brasileiras, com 11 trabalhos. Ainda Estou Aqui venceu em três categorias: Melhor filme iberoamericano, Melhor diretor (Walter Salles) e Melhor atriz (Fernanda Torres). A série Senna, garantiu o troféu de melhor criação.
A premiação reconhece as principais produções da América Latina, Espanha e Portugal, sendo considerada a mais importante do cinema ibero-americano.
Fernanda Torres e Walter Salles não compareceram à premiação e as estatuetas foram recebidas pela atriz Valentina Herszage, que interpreta Vera Paiva no filme, e Rodrigo Teixeira, produtor do longa. Em março, Ainda Estou Aqui se tornou o primeiro filme brasileiro premiado no Oscar, em um acontecimento histórico. Antes, entre outros, Fernanda ganhou o prestigioso Prêmio Globo de Ouro, de melhor atriz.
O filme é baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva e comoveu os brasileiros ao narrar o impacto da ditadura em uma família depois do desaparecimento de Rubens Paiva. Fernanda Torres vive a personagem de Eunice Paiva, advogada e ativista determinada que busca desvendar a verdade sobre o desaparecimento do marido, assassinado pela ditadura militar. O filme venceu muitos prêmios internacionais e lotou os cinemas do Brasil e de outros países.
Premiado como Melhor criador de série por Senna, ao lado de Fernando Coimbra, Patrícia Andrade e Vicente Amorim, Luiz Bolognesi falou ao Correio. "A gente tinha que atingir o coração do público e precisamos interpretar a vida de Senna e entender o que o motor representava na vida dele. Achamos que o grande conflito do Senna era escolher entre o amor e o motor, várias vezes na vida dele", explicou.
Temas sociais
A preocupação com o meio ambiente, com os marginalizados e com a tradição das histórias perpetuadas por memória em família, renderam temas entre os premiados. A Melhor série, Cem anos de solidão, adaptação da obra de Gabriel Garía Márquez, foi exemplo de vitória. Técnicos experientes como Edu Grau, diretor de fotografia, e Alberto Iglesias, autor da melhor música original, venceram pelo drama de Pedro Almodóvar, falado em inglês, O quarto ao lado.
A transposição da obra do mexicano Juan Rulfo, Pedro Páramo, venceu pela Melhor direção de arte. A animação brasileira Arca de Noé perdeu o prêmio para Mariposas negras, de David Baute, detida nos impactos climáticos que levam africanos, caribenhos e asiáticos a migrar para sobreviver.
Três mulheres conquistaram prêmios importantes com o drama A infiltrada, de Arantxa Echevarría, que trata da rudeza que cerca uma policial posicionada entre terroristas do ETA. No campo das séries, o coadjuvante Jairo Camarg, foi vitorioso.
Apoio universal
Entre os candidatos a Melhor ator, o premiado colombiano Claudio Cataño da série Cem Anos de solidão falou de ingrediente na medida da preferência junto ao público. "Não se trata de o texto de Gabriel García Márquez agregar algo. De certa maneira, estabelece uma gênese de mundo inteiro e, nesta escala, contempla as vicissitudes, as tragédias e as viagens daquilo que significa ser um ser humano, de começar a fundação de uma forma de mundo e desenvolvê-la. Algo maravilhoso no texto é que permite estabelecer uma configuração, uma análise e uma imersão profunda no desenvolvimento histórico do mundo, por meio do povoado representado (Macondo)", disse. Na visão de Cataño, a série embute um avatar do que somos como sociedade e como história de mundo. "Daí, a universalidade gigantesca, principalmente, na saga da família Buendía (de protagonistas). Começa tudo, na leitura do livro, a parecer 2 mil anos de história do mundo. Isso inclui política, guerra, e o que significa ser um ser humano, através do tempo e do desenvolvimento da cultura", avaliou.
Sínteses do que seja a mescla de culturas em produtos audiovisuais de streaming não faltavam nos bastidores dos prêmios Platino. Com a sorte de trabalhar em todo o tipo de projetos, seja na China (com Scorsese), seja nos Estados Unidos, que ambientaram O segredo de Brokeback Mountain (junto ao taiwanês Ang Lee), o mexicano (diretor de fotografia de filmes de Alejando Iñárritu) Rodrigo Prieto falou ao Correio. "Fiz coisas como 8 mile (filme com hip-hop), em projetos que não são da minha cultura. A chave está em aprender. Se aproximar do material. Tudo com respeito e aprendizagem e, plasmar, por meio do filtro da cultura pessoal de cada um. No meu caso, com imagens como diretor de fotografia. Martin Scorsese, com quem trabalho, faz isto: investigar a fundo, tudo. Com Ang Lee, vi seu trabalho de se aprofundar no cotidiano dos pastores de ovelhas. É preciso investigar, aprender e conhecer. Existem sempre consultores sobre diferentes tópicos. Fiz exatamente isso com Pedro Páramo (filme baseado no clássico de Juan Rulfo). Porque sou mexicano, sim, mas não nasci na época narrada ou no campo. Sou chilango. Meu avô esteve na Revolução Mexicana e contou muitas histórias dessa época. A minha avó, nascida em Potosí (Bolvía) também. Para mim, isto é como uma oportunidade única de entrar noutras culturas, aprender sobre elas e captá-las, e bem, é uma grande responsabilidade", observou o diretor de fotografia de Barbie (2023).
Outro cineasta presente na Espanha e que se apoiou num clássico para estampar na tela a animação Arca de Noé (de Vinicius de Moraes) foi o brasileiro Sérgio Machado. Efetivamente, se disse atento à internacionalização dos filmes nacionais, a partir do Oscar, com reais investimentos. "O Arca de Noé, de alguma maneira, é um marco. Foi vendido para 70 países. Animação é um gênero que viaja muito e foi lançado em países de língua hispânica e para o mundo inteiro, a partir de todo um esforço", disse Machado, já com dois novos documentários prontos, por estrear: Os três obás de Xangô e A Bahia me fez assim (ambos com pegada musical).
Ainda muito iluminada (e, para alguns, ofuscada) com a indicação ao Oscar, Karla Sofía Gascón, atriz de Emilia Pérez, circulou pelo evento, com direito a integrar partida de futebol, com Encuentro de Las Estrellas (no estádio Butarque de Leganés), que contou com Sorín, Iker Casillas e Mario Suaréz. "Tomara que os países da América Latina junto à Espanha sigam entrosados, já que temos um potencial para cinema muito grande. Estive em São Paulo com Emilia Pérez, recebendo carinho, e como conheço Mauricio de Sousa pessoalmente tive a oportunidade de ir aos seus estúdios e também de jogar um pouco com Ronaldinho. Amo o Brasil. Além disso, o futebol, por exemplo, abastece uma relação perfeita com o Brasil. Sempre foi meu time de alma para torcida. Muitos jogadores de Real Madrid eram do Brasil. Foram, aqui, simplesmente maravilhosos", pontuou, ao Correio.
Homenageada especial, nos Platino, pela carreira, a atriz, produtora e diretora Eva Longoria deu destaque a temas de inclusão. Feminismo e feminilidade estiveram em pauta. "Eu não equilibro esses elementos: simplesmente, sou ambos. Não há razão de separar feminilidade de feminismo. Temos de nos ancorar, simultaneamente. É o mesmo de ser latina e americana, ao mesmo tempo. Sou 100% mexicana e 100% norte-americana. Nas criações narrativas, sempre teremos reflexo daquilo que somos. Quando fiz Flamin´ hot (indicado a um Oscar), sempre despontava, como diretora, o meu estilo chicana, de méxico-americana, naquela narrativa em torno de Richard Montañez (CEO de uma empresa, representado no filme, depois de ascensão inesperada). Precisamos de oportunidades para todo tipo de mulher de todas as cores e jeitos, incluídas as transgênero. Quando fiz a série Terra de mulheres, fiz com Carmen Maura e com Victoria Bazúa (artista trans), talentosa, mexicana e que terá futuro brilhante em Hollywood", observou.
Duas perguntas para // Rodrigo Teixeira, coprodutor de Ainda estou aqui
Temos um legado do pós-Oscar (vencido pelo Brasil)? O que vem pela frente de projetos e quais portas o Oscar abriu para vocês?
O Ainda Estou Aqui abre uma porta, e que a gente possa percorrer essa porta com Kleber Mendonça, agora em Cannes, e com outros muitos diretores. O Gabriel Mascaro (um dos vencedores de Berlim), quem sabe temos mais feitos com filmes do Karim Aïnouz, com a Carol Marcowicz. Como o Aly Muritiba (diretor da série Cidade de Deus: a luta não para) cunhou, brilhantemente, vivemos a "onda nova" do cinema brasileiro. Um nome que remete à bossa nova e um redescoberto filme brasileiro. E eu acho que a gente tem essa onda do filme pra frente. É do que precisamos: de uma imagem feliz, uma energia bacana. Isso é um legado que o Ainda Estou Aqui vai deixar. Quanto aos novos projetos, claro que abriu portas para novos filmes, já estou com dois novos longas, depois de filmar quatro novos longas em 2024. Tenho agora dois outros em pré-produção para começar a rodar em maio e junho. Estou muito feliz. Estou com um filme, no Líbano, chamado Lobos, e outo, nos Estados Unidos, chamado Paper tiger, o novo longa do James Grey.
Estamos no Platino e pergunto da recepção ibero-americana. Aliás, o Walter Salles ou a Fernanda Torres comentaram do fator da difusão entre os latinos que pode pré-estabelecer oportunas pontes
de coprodução?
O Walter sempre apoiou o cinema latino e o ibero-americano. O filme Terra estrangeira foi filmado em Lisboa, em Cabo Verde. Ele antecipou esses movimentos de hoje, sem o Walter Salles, o cinema latino-americano não teria essa força, ele apoiou o cinema mexicano, argentino, venezuelano e o chileno. O Walter é um diplomata do cinema latino-americano. Isso é parte dele. A maior mensagem que ele quer é que possamos ser unidos. O brasileiro estava numa ilha mesmo. Éramos autossuficientes, só que acho que chegou a hora de olharmos para fora. Temos que olhar para a frente: somos latino-americanos. Só falamos uma língua diferente. Do mundo ibero-americano também fazemos parte: Portugal é a pátria-mãe. Nós temos, e vivo isso. Sou português. Meu avô era português, sou segunda geração no Brasil. Eu tenho essa noção da importância da relação com Portugal e Espanha. Meu aporte nos Estados Unidos de trabalho é português. Me sinto representante natural ibero-americano no mundo de trabalho de cinema.
*O repórter viajou a convite da organização do evento.