
Com uma lista de 700 obras e 200 artistas, a exposição Fullgás — artes visuais e anos 1980 no Brasil desembarca no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) com a missão de conduzir o público por uma geração que se engajou, criticou, sofreu e não teve medo de trazer para a arte questões políticas que afligiam o país. A curadoria de Raphael Fonseca, Amanda Tavares e Tálisson
Melo procurou trazer artistas de todo o Brasil que produziram nas décadas de 1980 e 1990, com a intenção de fazer uma revisão crítica da arte feita no país naquelas décadas, mas pensando em grande escala. "Os anos 1980 ainda não tinham ado por uma revisão crítica", explica Amanda.
Os artistas em atividade naquele período emergiam de um ambiente de repressão política e muitos deles levaram para as obras questões como a violência, a tortura, os desaparecimentos, a falta de liberdade de expressão. A redemocratização viria a partir da década de 1980, durante a qual essa produção continuou e recebeu um sopro de esperança diante do fim do regime. "Um dos pontos era pensar o que seria uma geração 1980. Não fazia sentido pensar em 10 anos fechados entre 1980 e 1990, então a gente entendeu, de acordo com as pesquisas, que precisávamos pensar numa geração num sentido mais amplo, mais expandido", explica a curadora.
Por isso, a exposição oferece ao público um recorte que vai de 1978, marcado pelo fim do AI 5, a 1993, quando havia terminado o período Collor e Itamar Franco comandava o país. É uma geração formada na ditadura e que também produziu nos anos mais duros, mas que estava madura no momento da anistia e do retorno dos exilados. "Existia um espírito de uma geração atravessada não só pelas questões políticas, mas também por alguns fatos que percorreram esses anos, um certo espírito positivo ou mais alegre, esperançoso diante do fim da ditadura e que vincula com o processo de redemocratização. E esse time tem o ápice no momento da eleição até a queda desse sonho, com o plano Collor e a queda do presidente até o Itamar pré-real. A partir de 1994, é outro contexto geral de Brasil", diz Amanda.
Em 1984, a exposição Como vai você, geração 80?, realizada no Parque Lage, no Rio de Janeiro, pretendia apresentar justamente esse grupo de artistas forjados num momento de mudanças extremas no país.Há cerca de duas décadas, o curador Marcus Lontra levou para o CCBB a exposição Onde está você, Geração 80?, com o intuito de voltar à produção do período. A primeira exposição é um marco na história da arte brasileira, mas os curadores de Fullgás, realizada 40 anos depois, queriam ir além. "Queríamos pensar essa geração um pouco ampliada. Hoje, a gente tem mais instrumental e ferramentas de pesquisa para pensar nessa produção em escala nacional", acredita Amanda. "Fizemos uma opção no campo da arte que era escolher lidar com artistas que começaram a produzir nesse período."
Para o curador Raphael Fonseca, é também uma forma de olhar para uma geração que está envelhecendo e tem nomes internacionais, como Beatriz Milhazes e Adriana Varejão, mas também tem muitos expoentes pouco conhecidos fora de seus estados. "Mais que fazer um eco com o momento presente, queremos tentar mostrar o momento histórico. Nossa grande preocupação era fazer uma homenagem e contribuir como alargamento de referências", diz. O título Fullgás faz referência à música gravada em 1984 por Marina Lima, que esteve ontem na abertura da exposição. A curadoria dividiu a mostra em cinco núcleos nomeados com títulos de músicas dos anos 1980.
Que país é este (Legião Urbana, 1987)
Política, economia, promulgação da Constituição, organização da sociedade civil, inflação, violência e ditadura militar são alguns dos temas tratados pelos artistas neste núcleo. São obras como as fotografias do paraense Miguel Chikaoka, que registrou os movimentos sociais, trabalhos do coletivo Manga Rosa, capaz de ocupar as ruas graças ao fim do regime militar, Arthur Bispo do Rosário e Tizuka Yamasaki, com o filme Patriamada, feito durante as Diretas Já. "Aqui, grande parte das obras se volta para um resquício da presença da violência da ditadura, porque a redemocratização não eliminou a violência do estado, é uma violência que permanece. E a gente percebe que há processos violentos que nunca deixaram de existir e esse núcleo fala sobre isso", explica a curadora.
Beat acelerado (Metrô, 1985)
É o núcleo dedicado à empolgação, ao frenesi, ao gozo e ao prazer, um conjunto de sentimentos que envolve esperança e euforia pelo fim da ditadura e diante da redemocratização. É o maior núcleo da exposição e tem a cor como um dos destaques. Obras de Beatriz Milhazes, Leda Catunda, Marcos Chaves, Rosa Gauditano, que fotografava bares de mulheres lésbicas na década de 1980, estão reunidas ao lado de fotografias, cartazes, folders de festas que explicitam uma volta às ruas.
Diversões eletrônicas
(Arrigo Barnabé, 1980),
A marca nesse núcleo é a experimentação. A expansão das mídias eletrônicas, com a chegada definitiva de computadores, videocassetes e walkmans, também trazia um campo vasto de experiências para os artistas. "A gente fala da relação com a tecnologia em uma sociedade ainda analógica. Aqui, por exemplo, a gente traz o trabalho do vídeo nas aldeias, que significa formar indígenas para que possam atuar a partir do audiovisual em questões que interessam a eles. Ao longo dos núcleos, vamos vendo diversas maneiras de essas manifestações políticas acontecerem, manifestações que se repetem hoje", explica Amanda. Ainda neste núcleo estão obras como de controle, de Luiz Hermano, a série de trabalhos com xerox de Alex Vallauri, e a pintura Família materialista, de Cristina Salgado.
Pássaros na garganta
(Tetê Espíndola, 1982)
Pinturas como Lacrima Christie, de Cristina Canale, e O pranto dos animais, de Hélio Melo, assim como a série Césio 137, de Siron Franco, estão neste núcleo para falar de uma arte que presta atenção na natureza, que olha para as discussões ecológicas e para relação do homem com o meio ambiente. "É o núcleo em que a gente olha para o território, o meio ambiente, desde a noção mesmo de territorialidade em obras que lidam até com materiais orgânicos. Essas questões aparecem atravessadas por discussões do âmbito da polícia, porque a gente viveu, naquele momento, discussões em torno da Constituição e um debate, por exemplo, sobre demarcação das terras dos povos indígenas. Aqui falamos também do legado do Chico Mendes e do césio 137", diz a curadora.
O tempo não para (Cazuza, 1988)
A agem do tempo e uma certa melancolia encontram eco no título da exposição, Fullgás, mas também em obras que refletem sobre a finitude e os excessos de uma geração, finalmente permitidos e bem-vindos em uma década de abertura e liberdade. Aqui entram trabalhos de Leonilson, Leila Danziger, Fernanda Gomes, Ana Amorim e Fernando Zarif.