
O cineasta pernambucano Gabriel Mascaro sabe, com segurança de sua meta, ao abraçar a sétima arte: "Faço filmes para colocar mais dúvida no mundo, para encher de incertezas". No Festival de Berlim que, no ado, premiou atrizes como Ana Beatriz Nogueira, Marcélia Cartaxo, e obras como Central do Brasil e Tropa de Elite, Mascaro comparece na mostra competitiva da 75ª edição do festival alemão com o longa O último azul, a ser exibido hoje. "Quando a gente faz um filme, faz sempre com muita energia e tudo o que acontece a partir dele é surpresa e felicidade. Se vier algum prêmio, que maravilha! Acho que coroa o trabalho feito com carinho e muita entrega. Mas a vitória maior já consegui: colocar o Brasil na competição principal no festival que consagrou Fernanda Montenegro e o Central do Brasil, em 1998", demarca o diretor, ladeado, em disputa por consagrados colegas como o coreano Hong Sang-soo, o norte-americano Richard Linklater e o chileno Michel Franco.
A atriz brasileira Denise Weinberg — na coprodução Brasil, México, Chile e Países Baixos — entra em campo como destaque, em Berlim, com colegas como Margaret Qualley (de A substância), Jessica Chastain (A hora mais escura) e Marion Cotillard (a premiada com o Oscar pelo retrato de Edith Piaff). "No nosso filme, temos tanto atores de muita qualidade, que são de Manaus, como veremos o Rodrigo Santoro no papel de um barqueiro, na Amazônia. É um encontro muito bonito do meu cinema com a classe artística manauara. Lá, há um teatro muito pujante, e um cinema cada vez mais forte. No filme, atores como Adanilo e Isabela Catão (do filme Motel Destino) têm um encontro com a atriz da estatura da Denise Wainer e com Santoro. É uma festa muito grande para o cinema brasileiro", avalia Gabriel Mascaro (leia entrevista, ao lado).
Tom universal
Dentro dessa festa, a diretora brasiliense Rafaela Camelo celebra integrar "a grande comitiva em Berlim", com o filme A natureza das coisas invisíveis. "Isso é uma mostra da nossa capacidade de contar histórias e da nossa capacidade de produção, e confirma a projeção que os nossos filmes podem ter junto ao público internacional. Isso tudo é um bom indício de que tempos melhores podem estar por vir no audiovisual brasileiro", pontua Rafaela. Ela nutre relação especial com Berlim: lá, lançou o último curta, em 2023, As miçangas (em codireção com Emanuel Lavor). "Sinto que o momento faz parte da trajetória que começou com o curta. Quando estive no festival alemão, assisti às sessões do segmento Generation e imaginei A natureza das coisas invisíveis, lá; na época, estávamos entrando em pré-produção ainda. É uma sessão que valoriza narrativas com personagens jovens e que trata esse público com muita seriedade: me sinto honrada em fazer parte", define. Mostrar um filme que traz o selo 'brasiliense', com essa projeção internacional, para nós, é um orgulho tremendo. Este filme é o fruto de um trabalho de uma equipe com muitas mulheres talentosas", diz.
"Desde a retomada, em meados dos anos 1990, o cinema brasileiro vem subindo de nível técnico e artístico, e com o apoio constante da Ancine (Agência Nacional Cinema) e do Fundo Setorial (que realimenta financiamentos em cinema), tivemos ai uns 20 anos com muitos filmes expressivos tanto para a cultura nacional quanto no panorama internacional", pontua a diretora Anna Muylaert, vencedora de prêmios importantes, como o de público da mostra Panorama (em Berlim) para o longa Que horas ela volta? (premiado ainda no Festival de Sundance, em 2015), e está na seleção de Berlim, com o longa A melhor mãe do mundo. Destacado para a Berlinale Special, segmento não competitivo de Berlim, o filme traz a jornada de uma catadora de recicláveis que tem um marido abusivo (papel de Seu Jorge). Seria função do cinema modificar a realidade, a partir de um enfoque engajado? "Acho que o cinema entretém, reflete, faz refletir sobre a nossa realidade e nossa humanidade, mas existem alguns raros casos em que um filme pode ter tanta força naquilo que diz ou mostra que acaba realmente mudando padrões de comportamento da sociedade na vida real. Mas são casos raros", avalia a diretora de filmes como É proibido fumar e Durval discos.
Crescimento
Uma agente ativa do amadurecimento do cinema nacional, a diretora Lúcia Murat também estará em Berlim para a exibição do longa Hora do recreio, selecionado para a mostra Generation 14 Plus, e que ainda entra na disputa como melhor documentário, além de estar cotado para o Prêmio da Anistia Internacional. A visibilidade mundo afora do longa de Walter Salles (Ainda estou aqui) é inspiradora. "A importância deste filme é imensa, inclusive na abertura do cinema brasileiro no mundo. Berlim sempre se interessou pelo nosso cinema. É a terceira vez que vou ao festival. Esse ano, a participação é muito boa, com filmes em praticamente todas as mostras do festival", sublinha Murat. Empolgada com o evento, aos 76 anos, a diretora celebra a apreciação de Hora do recreio. "É um filme que se propõe a ouvir os jovens. Daí, a sua força. Nós é que temos que ouvi-los! Eu comecei a ficar encantada com eles na medida em que precisei, nos meus filmes, de me aproximar de grupos como o Nós do Morro, do Vidigal, que trabalha com jovens da periferia oferecendo uma alternativa artística a suas vidas", diz a diretora.
Entrevista
Gabriel Mascaro, diretor
Como vê a febre da aceitação de Ainda estou aqui no exterior?
Acho que, sobretudo, o Ainda estou aqui atua no nosso imaginário de orgulho nacional. Então, é uma alegria muito grande, é uma conquista imensa, sem precedentes, na história do cinema brasileiro. Algo que dimensiona e coloca o cinema brasileiro no lugar em que ele sempre deveria estar: nos braços do povo. Há ainda a participação do Brasil nos festivais, conquistando espaços de visibilidade, numa construção histórica. Motel destino (de Karim Aïnouz) estava na competição de Cannes; Ainda estou aqui, no Festival de Veneza, e agora, O último azul, que está em Berlim. Estamos cruzando os três de maiores festivais, com a participação brasileira nessas janelas muito disputadas. É uma conquista muito especial de uma safra muito boa e que vai se confirmando, a cada festival. É um momento de celebração do cinema brasileiro se consolidando.
Como você vê o fator streaming para o cinema nacional?
Acho que é importante pensar toda forma de democratização do o à produção cultural brasileira, é válido e enriquecedor. De alguma maneira, temos que investigar um pouco de qual maneira, em termos de ação pública, noutros países houve eficiência e consolidação. Sem achatamento da brecha que o mercado poderia propiciar. Sou entusiasta da ideia de uma janela a mais de difusão do cinema brasileiro. Quero ver qual o streaming que vai abraçar o meu filme, e fazer ele chegar em mais pessoas. Qual é o streaming, de fato, de major internacional que acredita no Brasil.
Teu filme sonda questões de preservação ambiental?
Acho que o filme faz um recorte, de certa maneira, descolado do tempo. Com ele, entramos no lugar da fantasia e de uma quase distopia. Tem-se o retrato de um governo populista e desenvolvimentista que isola os idosos, quando eles chegam numa certa idade, para que a juventude não se preocupe com os idosos, e possa se concentrar na produtividade.
Como?
O filme é sobre o slogan: “O futuro é para todos (risos)”. Ele mergulha na fantasia do Brasil ao tratar sobre envelhecer, desejando, sobre o direito de sonhar, a partir de uma personagem que é uma mulher 75 que, quando o governo abaixa a idade para um programa específico, aos 75, ela entra no programa, de surpresa. Falam: “Você vai ter que ir embora”. E ela fala: “Pera aí, eu tinha algumas coisas por fazer. Eu tenho alguns desejos ainda”. Então começa o debate. A personagem recusa estar nessa colônia, onde o Brasil deposita os idosos, em nome de um projeto de desenvolvimento nacional.
O governo sempre é um inimigo, ou não (risos)?
O filme não flerta com nenhuma relação mais direta com governo. É um Brasil que não não é real, é fantástico. Nele, se aposta no desenvolvimento, independentemente da corrente ideológica, e que isola idosos. Em vez do discurso bobo, de direita ou de esquerda. É um debate que pode ecoar nas duas frentes, sem cair na polarização. Não quis diminuir o debate indo para o espectro bolsonarista ou esquerdista. Fiz uma alegoria muito livre, para se pensar o Brasil, independentemente de corrente progressista ou conservadora.
Brasília tem efetivo potencial como manancial de talentos de cinema?
Eu tenho uma perspectiva um pouco menos regional, no sentido de que penso sempre um Brasil em linha cosmopolita. Não vou muito pelo sotaque da regionalidade. Até no sertão que filmei (em Boi neon), tive (como ator) o Juliano Cazarré (de Pelotas), brasiliense, além da Maeve Jinkings, também brasiliense, mas penso num sertão que pode incluir pessoas que viajam. Não idealizo dar conta de uma regionalidade, de um sotaque específico.