MÚSICA BRASILIENSE DE RUA

Grupo Liga Tripa ajudou a construir identidade cultural de Brasília

Em atividade desde o fim dos anos 1970, conjunto transformava ruas em palcos e até hoje leva música e alegria aos quatro cantos da cidade

Integrantes da banda Liga Tripa em frente ao prédio  do jornal Correio Braziliense -  (crédito: F. Gualberto/CB/D.A Press)
Integrantes da banda Liga Tripa em frente ao prédio do jornal Correio Braziliense - (crédito: F. Gualberto/CB/D.A Press)

Na década seguinte à inauguração de Brasília, a cidade ainda construía a própria identidade cultural. No fim dos anos 1970, reta final da ditadura militar no Brasil, as manifestações artísticas voltaram a tomar força no país — foi nessa época que surgiu o grupo brasiliense Liga Tripa. Inicialmente formado por um trio de artistas, a banda chegou a ter cerca de 20 integrantes em determinados períodos. Com violões, chocalhos e flautas em mãos, o grupo de jovens moradores da capital federal transformavam as ruas em palcos, levando música e alegria aos quatro cantos da cidade.

"Havia muito movimento de arte nas ruas naquela época. As artes plásticas começaram a aparecer nas paredes, mais peças de teatro estavam em cartaz. Em Brasília, por exemplo, havia o movimento mimeógrafo, das poesias feitas em casa e vendidas nas ruas. Havia esse movimento das artes saindo para a rua, em um diálogo tenso com o regime militar que já começava a se esgotar", lembra Aldo Justo, um dos fundadores do Liga Tripa.

Compositor, ele foi convidado pelos amigos artistas Ita Catta Preta e Lucia Blues para formar um grupo musical em 1979. A estreia do trio seria no Show do Arroto, realizado no intervalo entre as aulas da manhã e da tarde da Universidade de Brasília (UnB), no anfiteatro 9. "Antes do show, a gente teve dificuldades para encontrar um lugar de ensaio. Foi aí que eu sugeri que nós ensaiássemos na rua", conta Aldo. "A gente também tinha pouca experiência de palco, para não dizer nenhuma. Então era uma oportunidade da gente se familiarizar com o público e vencer uma série de medos de se apresentar", explica.

Ita e Lucia aprovaram a sugestão e os três seguiram rumo à quadra residencial da 312 Sul, no meio da tarde. "Compramos penduradores para nossos violões e a Lucia pegou sementes de flamboyant para fazer um chocalho", relata o músico. Para além da função de ensaio, a apresentação na rua era, para Aldo, uma oportunidade de ver a reação das pessoas e enfrentar o público olhos nos olhos. Lá, eles tocaram três ou quatro composições autorais para trabalhadoras domésticas, que botaram as cabeças para fora das janelas para acompanhar a apresentação.

"A gente sentiu uma energia muito legal da parte delas, achamos a experiência muito gostosa e gostamos daquela descoberta", lembra Aldo. "Quando teríamos a chance das pessoas assistirem a um show da rapaziada jovem de Brasília? Então foi a forma que encontramos de cantar nossas músicas para várias plateias e públicos", aponta. A primeira apresentação deixou os três jovens entusiasmados, e, tomados pela adrenalina, seguiram para o Beirute, na 109 Sul. "Entramos lá cantando nossas músicas e houve um impacto. Sentimos uma energia forte dali, tanto positiva quanto negativa. Foi um negócio que causou um espanto — algumas pessoas adoraram, outras não gostaram", descreve.

Rapidamente, os três artistas perceberam estar fazendo mais do que um ensaio. "Era uma força maior. Um trabalho original, bonito, rico e político", avalia o compositor. No mesmo dia, os amigos se intitularam Liga Tripa, nome sugerido por Ita. "Era um apelido que o pessoal do trabalho me deu naquela época, porque eu era muito magro", conta.

Após as duas primeiras apresentações, bem-sucedidas, Aldo, Ita e Lucia foram para casa, picharam Liga Tripa em camisetas brancas e voltaram para a rua. Além do Beirute, aram também em outros bares da cidade. "Claro que nem todo mundo gostava. Havia a boa aceitação, mas também tinha uma recepção não tão boa, coisa que a gente achava maravilhoso. A gente gostava do impacto que criávamos", afirma. Juriti e Nossa Senhora do Cerrado — posteriormente gravada pelo Legião Urbana —, já conhecidas na cidade, eram algumas das músicas cantadas pelo grupo.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Repressão militar

"Nossas músicas não tinham apelos políticos, mas nós tínhamos uma postura bem forte e libertária. Então é claro que o regime militar não olhava com simpatia para nós", revela Aldo. Lugar icônico na história da banda, o Beirute foi um dos principais palcos do Liga Tripa, onde os integrantes sentiam mais liberdade, segundo o compositor. No entanto, lá também foi o cenário de um dos episódios de maior repressão vividos pelos músicos.

Durante uma das apresentações na 109 Sul, apareceram policiais à paisana, que chegaram a puxar o violão das mãos de Aldo durante uma performance da banda. Ele, porém, reagiu à agressão e continuou cantando, olhando nos olhos dos militares. "Eles ficaram furiosos. Saíram de lá bufando", detalha o músico. Rapidamente, os repressores voltaram para o boteco armados com revólveres e cassetetes.

Aldo conseguiu fugir, mas perdeu o violão — o instrumento foi pisoteado pelos policiais. "A gente acabou ganhando um prestígio com esse episódio, porque representamos a cidade contra a repressão", declara o compositor. "De uma hora para a outra, a gente virou estrela da música popular de Brasília. Eu tenho gratidão por terem dado essa colher de chá para nós", ri. "Ganhamos força com o acontecimento", acrescenta.

  • Liga Tripa também se apresentava nos palcos
    Liga Tripa também se apresentava nos palcos Milla Petrillo/CB/D.A Press
  • Integrantes da banda Liga Tripa em frente ao prédio  do jornal Correio Braziliense
    Integrantes da banda Liga Tripa em frente ao prédio do jornal Correio Braziliense F. Gualberto/CB/D.A Press
  • Banda Liga Tripa: Mais de 40 anos de história
    Banda Liga Tripa: Mais de 40 anos de história Carlos Vieira/CB/DA Press
  • Banda Liga Tripa: tradição da música de rua brasiliense
    Banda Liga Tripa: tradição da música de rua brasiliense Carlos Vieira/CB/DA Press

Das ruas para os palcos

Há mais de 40 anos na ativa, os integrantes do Liga Tripa, hoje, priorizam os palcos. "O tempo foi ando e acabamos perdendo a pegada da rua, mas a gente eventualmente ainda faz apresentações assim. No meu aniversário, dois anos atrás, a rapaziada fez uma "Ligada" no Beirute. Mas a coisa, devagarinho, foi perdendo o ritmo e a gente foi se dedicando mais ao palco", diz Aldo. Apesar da tomada das ruas ser definida por ele como "o que há de mais rico e bonito no Liga", os shows nos palcos agora são prioridade do grupo, local onde atingem um maior público.

Acostumado a encher as vias da capital de arte durante a juventude, o integrante Sérgio Duboc se mostra incomodado com a atual situação de Brasília. "Estão querendo encaretar a cidade, eu já falo isso há muito tempo", aponta o artista. "A arte, por natureza, é uma coisa transgressora e progressista. Brasília hoje tem essa caretice, essa discussão antiga do barulho, de incomodar as pessoas. Realmente, houve um movimento em que os shows e os eventos começaram mais cedo e terminarem às 22h. Mesmo assim, a sanha careta não se satisfaz e fecha bares às 21h", protesta o músico.

"É um negócio esquisito, eles não percebem que os filhos deles precisam de arte, não percebem que as crianças e os adolescentes precisam de arte. Se você começar a tirar essas coisas, você atrasa o país. E eu acho que o objetivo deles é não deixar progredir mesmo", opina Sérgio. "Mas a cidade, mesmo assim, continua com aquela filosofia de fazer as coisas na rua, de continuar compondo e mostrando coisas novas, apesar desse ataque reacionário", finaliza.

 


Isabela Berrogain
postado em 09/02/2025 07:00
x