
Por Suzana Cremasco* — A recente viralização de um vídeo em que uma advogada relata ter sido procurada para ajuizar um pedido de guarda de um "bebê reborn" — boneca de silicone hiper-realista — não é apenas mais uma anedota do chamado "entretenimento jurídico". É um sintoma alarmante da corrosão do direito e da jurisdição enquanto espaços de resolução séria e legítima de conflitos.
Segundo a própria narrativa, a profissional recusou a demanda, como não poderia deixar de ser, e decidiu compartilhá-la publicamente, indicando o limite do absurdo que lhe foi apresentado. A reação foi previsível: curiosidade, memes, piadas — e pouquíssima crítica.
É preciso dizer com todas as letras: o direito não é lugar de fantasia. O Poder Judiciário não é palco de teatro. E a advocacia não pode ser instrumento de promoção da irracionalidade (e da irresponsabilidade) jurídica alheia. Em um país com quase 80 milhões de processos em curso e um tempo médio de sete anos para um desfecho definitivo, a mera cogitação de demandas desse tipo exige uma resposta à altura — firme, técnica e ética.
O mais grave não está na figura excêntrica que quer "litigar" por uma boneca. Está na forma como a sociedade (e parte da comunidade jurídica) reage: rindo, curtindo, comentando, engajando, tratando como curiosidade (ou loucura) inofensiva. Não é.
Ao tornar públicas essas abordagens sem o devido contexto crítico, reforça-se a falsa ideia de que qualquer desejo pode se transformar em direito — e de que o advogado seria mero operador da vontade do cliente. Não é assim. Advogar é, antes de tudo, filtrar, orientar, recusar. É responsabilidade, não espetáculo.
Há, inclusive, um ponto adicional que parece ter surgido nesse caso e que revela outra distorção jurídica relevante: a disputa sobre a titularidade da conta da boneca nas redes sociais. Nesse aspecto, convém separar as esferas com precisão. A conta em si — com número de seguidores, monetização, contratos de publicidade e conteúdo autoral — pode, sim, ser considerada um ativo digital. E, como tal, deve ser tratada como bem partilhável, sujeito às regras da comunhão ou da dissolução da sociedade conjugal, empresarial ou afetiva eventualmente existente entre as partes. Mas isso nada tem a ver com o afeto projetado sobre a boneca. Trata-se de patrimônio, não de parentalidade.
Confundir essas instâncias — emoção, identidade, posse, patrimônio e tutela jurídica — não é apenas conceitualmente equivocado. É um risco institucional.
A Justiça não é um lugar de acolhimento indiscriminado de toda dor subjetiva. É um espaço técnico para a resolução de litígios que envolvam interesses juridicamente tuteláveis. E isso exige discernimento. Nem toda dor vira direito. Nem todo conflito merece ação. Às vezes, é o afeto que precisa de cuidado — não o processo.
Enquanto tratarmos o Judiciário como balcão de desejos ou palco de performances emocionais, não haverá celeridade, nem eficiência, nem dignidade. A solução de disputas — seja por mediação, negociação ou judicialização — é pilar da democracia. Exige preparo, sobriedade, responsabilidade. Porque, quando o direito vira meme, a Justiça vira piada — e o pacto civilizatório que a sustenta começa a ruir. E, ao final, todos nós perdemos.
Doutora em direito pela UFMG, professora de processo civil do IBMEC, advogada especialista em solução de disputas estratégicas*