Mobilização em Brasília ressalta a diversidade cultural dos povos indígenas

Pinturas corporais, cocares, adornos e línguas diferentes. Participantes do 21º Acampamento Terra Livre destacam que, para entender e respeitar os povos originários, é preciso reconhecer suas singularidades

O evento é considerado a maior 
mobilização indígena do mundo -  (crédito:  Luis Nova)
O evento é considerado a maior mobilização indígena do mundo - (crédito: Luis Nova)

Enquanto milhares de indígenas marchavam pela Esplanada dos Ministérios, na última terça-feira, durante o 21º Acampamento Terra Livre (ATL), a riqueza de detalhes chamava a atenção. Pinturas corporais, cocares, adornos e línguas diferentes ressaltavam a diversidade cultural dos povos presentes. O evento, considerado a maior mobilização indígena do mundo, revelou histórias que desconstroem um estereótipo comum: a ideia de que "todo indígena é igual".

Diogo Weeramini, de 22 anos, veio do Rio de Janeiro representando o povo Guarani. Seu sobrenome, que significa "raios" em guarani, é parte de uma identidade que, muitas vezes, é ignorada. "Weeramini é minha essência, mas as pessoas nem tentam pronunciar", contou ele, ajustando o cocar sagrado que carregava. "Meus avós usavam isso para lutar por nossas terras. Hoje, eu continuo essa luta, também como indígena LGBTQIAP ", afirmou Diogo, enfatizando a dupla luta que enfrenta: contra o preconceito étnico e contra a homofobia, dentro e fora das comunidades. 

Por causa de sua orientação sexual, o indígena enfrentou o silêncio inicial dos mais velhos na comunidade. "Na aldeia, alguns ainda diziam que 'dois-espíritos' (LGBTQIAP ) deveriam viver escondidos." O preconceito trouxe crises de ansiedade e depressão. "Cheguei a pensar em desistir de tudo. Mas me lembrei do significado do meu nome — os raios não se escondem, eles iluminam."

O cocar, diferente dos modelos tradicionais de sua aldeia, foi uma criação própria. "As penas azuis representam minha liberdade, o vermelho é a força dos nossos ancestrais", explicou o jovem, que não parava de dançar ao som dos maracás durante a marcha. "Já me xingaram de 'índio', na cidade, e de 'gay', na aldeia, mas eu sou exatamente o que preciso ser: um Weeramini completo."

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    Tereza Arapiun, 58, trazia no rosto o urucum, que considera sua proteção espiritual e política Fotos: Letícia Mouhamed - Luis Nova Exp. CB/DA Press
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    Clédson Kanuxi, 22, ostentava com orgulho o xirete — adorno nasal de taquara dos Manoque Letícia Mouhamed
  • Evelyn Renan, 15, carregava, nas pinturas de jenipapo em seu rosto, a força ancestral do povo Caingangue-Guarani
    Evelyn Renan, 15, carregava, nas pinturas de jenipapo em seu rosto, a força ancestral do povo Caingangue-Guarani Letícia Mouhamed
  • Diogo Weeramini, de 22 anos, representante do povo Guarani, enfrenta uma dupla luta contra o preconceito
    Diogo Weeramini, de 22 anos, representante do povo Guarani, enfrenta uma dupla luta contra o preconceito Letícia Mouhamed
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    Desde segunda-feira, milhares de indígenas participam do 21º Acampamento Terra Livre Luis Nova
  • A diversidade cultural e de saberes marca a manifestação, que prossegue até hoje
    A diversidade cultural e de saberes marca a manifestação, que prossegue até hoje Luis Nova

Onça-pintada

Aos 15 anos, Evelyn Renan carregava, nas pinturas de jenipapo em seu rosto, a força ancestral de seu povo Caingangue-Guarani. Cada traço negro representa a proteção do Jaguaretê, a onça-pintada, ensinamento que recebeu da avó durante rituais matinais em sua aldeia, no Paraná. Estudante do Centro Cultural Kaingang, em Londrina, ela vive entre dois mundos: na cidade, enfrenta olhares curiosos ao falar sua língua materna; na comunidade, transforma-se em Yxupady, nome tradicional recebido em seu ritual de agem, aos 13 anos.

Em sua primeira participação no ATL, Evelyn trazia na mochila sementes de araucária — símbolo de esperança contra o avanço das plantações de soja que ameaçam seu território. O corpo marcado por cicatrizes ritualísticas contrastava com a firmeza ao segurar o cartaz de "Demarcação Já", escrito em três línguas. "Minha avó diz que, quando pintamos nosso rosto, os espíritos dos antigos marcham conosco", compartilhou.

A adolescente, que sonha em cursar artes, vê na educação uma ferramenta de resistência: "Quero criar pinturas que contem nossa história de um jeito que os não indígenas entendam". Seus olhos marejam ao falar dos rios que secam e das florestas que desaparecem, mas a voz não treme. "Tenho medo, mas a onça não caça sozinha — estamos aqui juntos", afirmou.

Orgulho

Do Mato Grosso, Clédson Kanuxi, 22, ostentava com orgulho o xirete — adorno nasal de taquara e pena que marca sua agem à vida adulta entre os Manoque. O símbolo, exclusivo dos homens da etnia, representa mais do que uma tradição: é um elo com os anteados que sobreviveram ao massacre que reduziu seu povo de 2 mil para menos de 100 pessoas.

Clédson lembrou que a conexão dele com a terra vai além do físico. "Cada gesto, cada padrão pintado em meu corpo é um mapa vivo da floresta que tentamos proteger. Nossos grafismos mostram onde estão as árvores sagradas que os madeireiros ainda não encontraram", revelou.

De acordo com ele, apesar de a Terra Indígena Manoque Ranchi estar demarcada, a falta de homologação mantém seu povo inseguro. "Somos como onças enjauladas em nosso próprio território", desabafou, enquanto mostrava as sementes de árvores extintas que carregava.

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Cartão de visitas

Haru Macião, 28, estudante de enfermagem, representava os Karajá de Tocantins. Com o cocar raheto equilibrado graciosamente sobre a cabeça, ele se destacava entre os manifestantes do ATL. "Este adorno é meu cartão de visitas", brincou, ajustando as longas penas vermelhas e azuis que balançam a cada movimento. "Quando uso na faculdade de enfermagem, em Goiânia, os colegas finalmente entendem: sou indígena antes de tudo."

Segundo ele, o cocar é um código social vivo. "Os solteiros usam raheto grande, como o meu. Quando me casar, usarei um pequeno", explicou Haru, destacando que as pinturas corporais em vermelho-tuku também não eram apenas adornos: "Esse sangue simbólico nos lembra que pertencemos à terra".

O estudante ressaltou que o sétimo período de enfermagem na Universidade Federal de Goiás não foi conquistado facilmente. "Na Ilha do Bananal, onde nasci, só tivemos escola regular há 15 anos", contou. "Levo o hospital para a aldeia e a aldeia para o hospital", disse ele, sobre seu estágio na Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina (SPDM), organização que atende populações indígenas. "Infelizmente somos duplamente invisíveis: como pacientes e como profissionais."

Proteção

A veterana Tereza Arapiun, 58, trazia no rosto o urucum, que considera sua proteção espiritual e política. "Essa pintura em meu rosto não é apenas tinta — é resistência. Quando me candidatei a deputada, em 2020, um pajé me deu este cocar e disse: 'Você vai lutar por nós na cidade grande'. E é isso que faço, entre o Rio de Janeiro e o Arapiuns, no Pará, onde nasci", contou.

De acordo com ela, o vermelho do urucum lembra que o sangue ainda corre nas terras indígenas. "Quando era criança, os mais velhos me contavam como escondiam nossa língua Nheengatu dos não indígenas. Hoje, ensino aos netos que falar nossa língua é um ato de guerra."

Tereza Arapiun é artesã, como as avós dela, e transforma palha de tucum em arte que conta histórias. "Cada cesto que teço tem o desenho de uma luta. Mas, quando precisei, peguei o microfone e fui para as ruas. Em 2019, na primeira Marcha das Mulheres Indígenas, entendi que nossa força está na união."

Ela acredita que os Arapiun não são apenas uma tribo. "Somos uma nação, com nossa própria medicina, nossa justiça, nosso modo de cuidar da floresta. Enquanto o rio Arapiuns sofrer com o garimpo, vou continuar trazendo essa luta para Brasília — seja com o cocar, seja com um mandato."

União

Mas por trás das diferenças, há causas comuns que unem esses povos: a luta pela demarcação de terras, contra o Marco Temporal, o combate ao racismo e a resistência contra atividades predatórias, como garimpo e desmatamento. "O Brasil trata os indígenas como um bloco único, mas somos diversos em línguas, rituais e até nas nossas urgências", frisou a deputada federal Joênia Wapichana.

Para Diogo, o ATL 2025 mostrou que, para entender e respeitar os povos originários, é preciso antes reconhecer suas singularidades — cada pintura, cada adorno, cada história carrega significados que desafiam qualquer tentativa de generalização. "Meu cocar guarani, meu nome Weeramini e minha identidade LGBT mostram que existem muitas formas de ser indígena. E todas merecem respeito", finalizou.

 

postado em 11/04/2025 05:55
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